Jurus storsivus

     Ela percebeu que algo muito grave estava acontecendo na sua casa. Ontem, havia dois quilos de açúcar na despensa; hoje, somente um. Na semana passada, percebeu que o pacote de sabão em pó perdeu metade do volume sem ser usado. O arroz também diminuiu bastante. A gasolina do carro, que antes durava quase dez dias com o tanque cheio, era suficiente apenas para uma semana. A quantidade de tudo estava diminuindo e, quando se deu conta, viu que o salário já não chegava no final do mês, acabando antes do dia trinta. Se houvesse alguma emergência, entrava no cheque especial. 
     Sem saber a quem recorrer, encontrou, pela internete, um especialista em vários assuntos domésticos, era eletricista, encanador,  pedreiro, desinsetizador, mecânico e especialista em economia doméstica.
     Ele chegou no final da tarde e ela lhe explicou o problema. Depois de ouvir com calma, ele perguntou:
     - Posso ver onde você percebeu a falta de produtos?
     - Entra. É por aqui. Venha ver o que está acontecendo.
     Ela o levou até a despensa. Ele entrou pedindo licença e carregando uma grande e pesada caixa, onde levava os seus equipamentos. Pelo caminho, foi pondo reparo em tudo, do chão às paredes, incluindo os móveis. Aprendeu, na sua profissão, a ser bastante observador porque qualquer detalhe podia fazer a diferença. Olhou com muito cuidado, tirou os copos do lugar para olhar atrás deles, olhou debaixo da pia e passou os dedos na poeira em cima dos armários mais altos. Perscrutando tudo, com jeito de médico, diagnosticou o problema. Para confirmar, perguntou-lhe:
     - Você tem algum financiamento?
     Surpresa, sem saber qual era a finalidade da pergunta, respondeu:         
     - Sim. Tenho só dois: minha casa e meu carro.
     - Não vai ser fácil a senhora se livrar tão fácil desse problema. A senhora tem a impressão de que alguma coisa está comendo o seu dinheiro?
     - Sim, isso mesmo! Alguma coisa está comendo o meu dinheiro! Não dá mais, meu salário não chega no final do mês.
     - Vai piorar. 
     - Por quê? O quê está acontecendo?
     - Sua casa está infestada de juros!
     Ela sentiu no bolso a dor daquelas palavras. Foi um choque. Sentou-se, colocou as mãos na cabeça e quis chorar. Resistiu. O homem tomou a liberdade de pegar um copo com água e lhe servir.  Cabisbaixa e sem esperança, questionou.
     - Não posso fazer nada?
     - Pode sim. Devolve o carro para o banco. Fica só com o financiamento da casa.
     - Aí fico a pé.
     - É uma escolha. Normalmente  a  pessoa  financia  a  casa ou o apartamento. Depois, financia o carro, a geladeira, o telefone celular e nem presta atenção nos juros. Enquanto a parcela cabe no salário, está tudo bem. Nem percebe que os juros estão lá. Mas, aí, a infestação já se instalou. Quando percebe, os juros tomaram tudo. Nesse momento, começa a diminuir o arroz e o feijão, some a carne do almoço, a geladeira fica vazia. Essa é a pior hora da infestação, é igual um câncer, só se percebe quando começa a doer. Vem cá, já viu como eles são?
     - Nunca vi.
     O homem abriu a caixa de ferramentas e tirou um pequeno microscópio, arrumou-o na mesa, pegou as lâminas. Passou uma haste de algodão pela parede da cozinha e a esfregou em uma das lâminas de vidro, colocou no suporte e focalizou, depois liberou a vista para a cliente.
     - Eles são tão pequeninos.
     - É o que eu disse, a gente nem percebe que eles existem. Mas estão aí devorando tudo.Vamos ampliar um pouco mais.
     - Nossa! Tem  o  símbolo  do  banco! Foi nesse banco que fiz o financiamento do carro. Não dá para matar estes juros?
     - Só tem um jeito de matar os juros. Pagar o total da dívida de uma vez só. Morre tudo na hora.
     - Só se eu ganhar na loteria para fazer isso, não tenho dinheiro!
     - Vem cá, vou te mostrar outra coisa.
     O homem  pegou  um  tubo de aerossol, agitou e borrifou na parede. Depois, pegou uma lanterna com uma luz especial e a acendeu. Aqueles equipamentos eram como o luminol usado pela polícia para detectar vestígios de sangue.  A superfície da parede pareceu se mover com a reação dos juros ao aerossol. Eram os milhares de logotipos do banco que brilhavam, com isso, eles podiam acompanhar o movimento dos juros.
    Eles começaram a segui-los. Os juros saíram da casa,  atravessaram o muro e continuaram pela rua. Depois de mais de um quilômetro, chegaram ao banco e iam entrando por baixo da porta.
     - É o mesmo banco do logotipo que está no corpo deles.
     - Você não viu nada ainda, veja isso.
     Ele retirou outra lâmpada com o mesmo tipo de luz especial. Borrifou o aerossol em vários lugares no entorno do banco, pelas calçadas, paredes, postes. Estava começando a escurecer e tudo começou a brilhar em um grande festival luminescente. Eram os juros que retornavam ao banco como se fossem milhões de cupins voltando ao seu ninho. Os dois estavam na calçada com aquela luminescência passando infinitamente sob seus pés e ele ia explicando a situação.
     - São bilhões e bilhões no Brasil inteiro. Estão comendo o dinheiro de todo mundo! Comem o dinheiro das pessoas, das empresas e dos governos! Trazem tudo aqui para o banco. Quase ninguém escapa. O Brasil está infestado da espécie "jurus storsivus". Eles são da pior espécie; são uma mutação genética da espécie "jurus compostus" que, por sua vez, são uma evolução da primeira espécie, os "juros simplorius". Os bancos conseguem espremê-los e recuperar o dinheiro que eles comem da casa de todos os brasileiros. E vão emprestar de novo para continuar infestando o país de juros. Dessa forma, os bancos vão acumulando toda a riqueza que o país produz.
     - Não dá para acabar com eles?
     - Dá.  Mas ninguém  está  disposto,  as pessoas se acostumaram com eles, nem sentem mais, aceitam o que está acontecendo. Estão iludidas pelos bancos, aceitam que seu patrimônio seja corroído, querem consumir mais e precisam dos bancos.
     - Tem de ter um jeito de não se ter mais juros. Como se pode fazer?
     - Faça como eu: guarde dinheiro, compre tudo à vista, nunca financie, nunca use o cheque especial, nunca use cartão de crédito ou de débito. Não tenha conta em banco. Receba tudo em dinheiro e pague tudo em dinheiro. Compre menos, consuma menos, tenha só o necessário para sobreviver.
       - Mas não é possível viver assim. Eu quero comprar, consumir,  viajar. Para isso eu preciso do crédito!
       - Então, não tem salvação!


 


21 08 2019 Alterado em 02 09 19