Os quatro amigos saíram da palestra com sentimentos muito diferentes, Carlos, Xeila e Téo estavam animados com tantas informações sobre o empreendedorismo. Discutiam excitados sobre as muitas formas de ganhar dinheiro e ser tornarem ricos. Compreenderam perfeitamente o conceito de mérito que o palestrante passou, onde os mais capazes seriam os que chegariam nos maiores rendimentos, e essa capacidade dependia unicamente de cada um, o esforço individual era o mais importante. Marina não se sentia tão bem assim. Desconhecia o motivo de não compreender porque isso não acontecia de fato com ela, porque ela, dos três, estava empregada em uma loja de roupas famosa do Centervalle Shopping. Há seis meses dava duro como vendedora e estoquista, chegava às dez da manhã, saía às dez da noite, seis dias por semana. Mas seu rendimento não crescia, continua ganhando o piso mínimo de vendedora. Passou dia das mães, dia dos namorados, dia dos pais, o Natal se aproximava. Até o momento, continuava com pouco dinheiro.
Era a primeira vez que ela saía de uma palestra decepcionada. Todas as semanas, ganhava forças para a dura batalha que viria e a energia psicológica da palestra era o seu poderoso combustível. Dessa vez, entendia que isso não estava mais dando certo. Sentiu que palestra motivacional semanal era uma contradição logo que saiu e viu aquele bebezinho ajeitado na carrocinha de papelão daquela mulher, que passou em frente dela na saída. Aquele bebê não podia ser culpado da mãe ser pobre. Ela viu aquela mãe catando papelão. E, enquanto esperava pelos amigos, Marina brincou com o bebê e conversou rapidamente com ela mãe, que se chamava Elvira, o bebê era Élton. Sabia o que a fez ter empatia com a mulher, o sorriso no sofrimento. Aquele sorriso franco, sincero e feliz no meio do sofrimento de um domingo à noite, catando papelão da rua para sustentar a família.
Um pouco antes, no almoço, com toda a família reunida para comer um lombo assado com batatas e macarrão, feito com capricho pela mãe. Primeiro, o pai fez o seu comentário obrigatório antes de comer:
_ Queremos agradecer aos ensinamentos de nossos gurus mercadológicos, aos mestres do empreendedorismo, que nos ensinaram a merecer tudo o que temos. Inclusive este belo almoço que agora vamos partilhar, que todos continuemos merecendo tudo o que ganhamos com o nosso esforço.
E Marina passou a tarde digerindo o lombo do empreendedorismo, o macarrão da meritocracia, o refrigerante do mercado. Só os pais podiam tomar vinho na hora do almoço.
Ela passou mais uma semana trabalhando duro para ganhar as parcas comissões. Queria merecer mais, queria ser a gerente, a dona da loja, ganhar milhões. Mas no final da semana, apesar de todo o esforço, suas vendas não atingiram as metas estabelecidas pela dona da loja. A cada vez, elas subiam um pouco mais e estava quase sempre impossível de atingi-las, o que decepcionava a moça. Semanalmente, após a palestra motivacional de empreendedorismo, ela voltava cheia de gás para bater a meta. Mas nessa semana, após mais um aumento da meta, ela desistiu por dentro, fingindo, por fora, que se esforçava. Não queria que a dona da loja percebesse sua falta de entusiasmo. Terminou a semana em último lugar nas vendas. Ganharia o mínimo estabelecido, como tinha ganhado o mesmo mínimo nas semanas anteriores. Entendeu que cada aumento da meta era a forma da dona da loja fazer com que ela continuasse ganhando o mínimo.
Foi no jantar de quinta-feira que o pai anunciou:
- Tenho uma grande surpresa para todos! Vamos a Nova York, o destino mais desejado por todos os empreendedores do mundo! Vamos participar da palestra do guru mundial do empreendedorismo: o Walter Mercado XXXII!
Quase todos à mesa festejaram, Marina ficou quieta, pensando na inutilidade daquela viagem. Podiam aproveitar mais se fossem conhecer os museus de Nova York. Mas ver uma palestra não era o melhor programa.
- Parece que você não ficou feliz, Marina?
- Ah, pai, é legal. Mas eu não acredito mais no mercado.
A frase saiu de forma espontânea e todos ficaram em silêncio olhando para ela. Ela percebeu o clima tenso que criou e tentou escapar de possíveis críticas.
- Eu disse que não acredito que tenho prova no dia marcado! Como a gente vai resolver a questão da prova?
- A gente vê com a escola. Disse o pai sem perceber que ele não tinha falado que dia eles iriam para Nova York.
Depois do jantar, Marina foi para o quarto e ficou pensando nas coisas que estavam acontecendo. Sabia que não tinha muito espaço para discordar da Meritocracia e do Empreendedorismo, a religião que seu pais seguiam. Ir para Nova York ver o Walter Mercado XXXII era o sonho de consumo da Classe Média Empreendedora, menos para ela, que queria, mesmo, colaborar com a Dona Elvira na horta comunitária do bairro Dom Pedro nos sábados de manhã. Outro dia ela foi lá sem que os pais soubessem e foi muito gostoso. Plantou, colheu, fez amigos, só não levou couve e pimenta para casa porque não teria como explicar para a mãe de onde vieram.
Ela não sabia como dizer para a família que não acreditava mais no Mercado, no Empreendorismo, na Meritocracia. Estava cansada de trabalhar no Shopping e continuar ganhando o mínimo. Queria que a família não tivesse essa fé cega e olhasse para ela, ouvisse o que ela tem a dizer, e passasse mais tempo com aquelas pessoas tão bacanas da horta comunitária.
Conversava, num desses sábados, com um dos organizadores da horta que, era, também, um militante sem terra. Por ele, descobriu que havia uma universidade de agronomia dos Sem Terra, totalmente gratuita, que ela poderia estudar lá. O problema é que ela não era e nunca foi sem terra, porque sempre foi um pessoa da cidade.
- Mas, se eu for morar com vocês, eu posso fazer a Universidade?
- Aí é diferente, tudo precisa ser analisado.
Marina teve vontade de contar que não queria ir para Nova York muitas vezes nos últimos dois meses. Mas era difícil conversar com os pais. O pai tomava conta do espaço e sempre tinha a sua opinião como a mais importante. A mãe era do tipo que mais obedecia do que reclamava, afinal, as contas estavam em dia. Incomodava demais a posição subserviente da mãe, sempre com aquele discurso de que a mulher tem de ser empreendedora, tem de fazer as coisas acontecerem, mas, no fundo, aceitava aquela situação cômoda para ela. Elaborou um plano de mandar uma mensagem pelo celular no grupo da família para dizer que não ia. Só falar assim: Não vou para Nova York, vou ficar em casa. Todo mundo ficava muito tempo no celular, jogando, mandando mensagens, vendo vídeos no youtube. Outro plano era fazer um vídeo explicando que não ia e porque não ia. Não tinha coragem e foi deixando as coisas acontecerem. A mãe providenciou os passaportes, marcaram a entrevista para o visto americano.
E foi um processo difícil para o visto. Foram duas vezes para São Paulo. Na primeira, tiraram foto e apresentaram um monte de documentos. Na segunda, no consulado, era para fazer uma entrevista. O lugar era difícil de chegar em São Paulo, enfrentaram uma fila enorme, centenas de brasileiros na rua, em fila, esperando a hora de entrar, todos rezando para não chover naquele dia. A fila andava lentamente, enfim, chegou a hora de entrar no portão do consulado, aquele monte de segurança, raio-x, revista na bolsa, nos bolsos, tirar os sapatos, nada de metal. O pai explicou depois que eles estavam entrando em um pedaço dos Estados Unidos dentro do Brasil, por isso que eles eram daquele jeito.
A fila foi andando dentro do consulado e o tempo todo o pai falava para eles sempre falarem a verdade. Perguntava: "Sabem em qual cidade vamos?", "O que nós vamos fazer?"; "Sabem o que eu faço, qual a minha profissão? Qual a minha renda?". "Tem de saber o nome de cada um e a data de nascimento de todo mundo da família". "Nome da escola de vocês, série que vocês estão". "Não pode fraquejar em nada". Tudo isso deixava a ela e aos irmãos muito nervosos para a entrevista. Eles ficavam olhando as pessoas indo até o guichê de lotérica ali na frente, ficavam um minuto ou dois e iam embora. O pai falou, "a entrevista é isso aí, só um minuto, é muito rápida".
- Por quê você quer ir para os Estados Unidos?
- Eu não quero ir. Meu pai quer ir e me levar com ele para a palestra do Walter Mercador XXXII, em Las Vegas.
- Você não quer ir para os Estados Unidos? Por quê?
- Não tenho interesse pelo seu país. Só vou por que meu pai quer ir.
- Isso é muito estranho, todo mundo que vem pedir visto quer ir, você é primeira pessoa que não quer ir e vem pedir visto. Por que veio?
- Está aprovada. Se você não quer ir, pode ir.
- Você está brincando, eu não quero ir!
- Agora eu já aprovei.
A comemoração do visto para todos foi em uma pizzaria. O pai, feliz, comia e se auto elogiava por ter feito tudo certo. A mãe comia, o irmão também e Marina comeu um pedacinho aqui e ali, sem fome, pensando em um jeito de fugir. Não aguentava mais e, inquirida sobre estar gostando do sabor da pizza, desabafou.
- Eu não quero ir para lá. Odeio o Walter Mercado XXXII! Não quero mais saber disso, não quero ir. Deixe eu ficar aqui no Brasil.
- Você está maluca, filha? Já comprei as passagens, gastei um dinheirão, seremos a melhor família empreendedora da cidade.
- Calma, Ricardo, ela está cansada! Hoje foi um dia muito longo! - a mãe tratava de colocar panos quentes e acalmar o pai.
- Não estou cansada, não! Eu não acredito mais em mercado, nem em Walter Mercado, nem em empreendedorismo! Tem um monte de gente passando fome lá fora por causa disso!
No início da semana da grande viagem, Marina não retornou do trabalho as 18 hs. A mãe pensou que ela iria direto para a escola, como fazia algumas vezes. enviou algumas mensagens de texto para o celular dela, sem resposta. Telefonou e ela não atendeu. Era quase onze horas da noite quando o pai chegou e se inteirou da situação, a mãe estava preocupada, ela sempre chegava às 22 hs e 30 min e avisava todo dia onde estava.
Começaram a telefonar para os amigos, viram no Facebook, ligaram para os parentes. Ninguém sabia o que tinha acontecido e, agora, todos estavam preocupados. Alguns saíram para procurar pelas ruas, cada um em um bairro, outros começaram a telefone nos hospitais e para a polícia para saber se houve alguma ocorrência com uma jovem de quase dezoito anos.
À uma da manhã, finalmente, uma mensagem de texto no celular da mãe chegou, era Marina avisando que estava bem, que não ia dizer onde estava, que ela não ia para Las Vegas e que, quando eles retornassem, poderiam conversar. Até lá, ela não queria ir para casa. Estava na casa de uma amiga e não ia dizer o endereço.
O pai queria rastrear o celular dela mas não sabia como fazer. Decidiu que ia perguntar na polícia no dia seguinte, tinha um amigo na delegacia do centro. A mãe não conseguia dormir, a madrugada ficou nessa situação sem solução. Cansada, a mãe dormiu às quatro da manhã. O irmão, que dormiu bem cedo, só ficou sabendo de tudo quando foi tomar café da manhã no dia seguinte.
Continuaram trocando mensagens durante a semana. Com a viagem marcada e os passaportes na mão, apesar da moça dizer que não ia, a família aguardou até a hora de sair para o aeroporto. O pai se contentou com as trocas de mensagens, a mãe se conformou com a ruptura que a filha provocou, o irmão queria mais curtir a viagem do que se preocupar com estas coisas, não estava interessado em palestra alguma.
Um automóvel grande, bonito, caro e novo, estacionou na beira da estrada de terra, em frente a um assentamento de agricultores que fizeram parte do movimento sem terra. O homem bem vestido desceu acompanhado da esposa. Aproximaram-se da porteira e foram recebidos com muita educação por uma senhora, conversaram e a mulher indicou-lhes a casa que eles procuravam. Caminharam pela trilha formada na terra, de longe, Marina avistou os pais, caminhou tranquila até eles e os abraçou. Receberam o abraço ainda incomodados com a situação.
- Vou passar um café para vocês, entrem em casa.
Eles entraram e observaram a casa modesta em que a filha morava, tudo era muito simples e sem luxo, se acomodaram na cozinha. A filha começou logo contando que eles estavam se preparando para a colheita de feijão e milho, tudo sem agrotóxico, agricultura orgânica, reclamou que a fazenda vizinha usava veneno e, às vezes, um pouco de veneno invadia o assentamento quando chovia.
- E também estou terminando a faculdade de Agronomia, estou nesse assentamento porque é mais perto da Federal. A faculdade é ótima, vocês conseguirão vir na minha formatura?
- Sim, vamos sim - prontificou-se a mãe.
- Mas não viemos aqui para falar disso, você sabe, quando você volta para casa?
Marina olhou os pais com compaixão, tristeza, alegria, dor e esperança. Deixou-os há cinco anos, foi para o acampamento sem terra, lutou com os trabalhadores pelo assentamento, conquistaram a terra, trabalhavam. Não tinha mais retorno e seus pais insistiam.
- Eu não volto mais pai. Aqui é o meu lugar. Eu não acredito na vida que vocês levam, eu não gostava daquela vida, do apego ao dinheiro, do consumo e de tantas outras coisas. Eu escolhi a minha vida aqui, vocês podem vir sempre, mas eu estou muito feliz aqui. Vou para visitar vocês.
Conversaram ainda sobre o irmão, que também estava na faculdade, ele cursava Medicina. Falaram de mais algumas coisas de como era a vida no assentamento. ela serviu o café com broa de fubá, tudo produzido lá, ainda deu um quilo de pó de café para eles levarem de presente.
O pai não se conformava com a filha seguir um caminho diferente de tudo aquilo que ele tinha ensinado, ela não acreditava em mercado, em meritocracia, em trabalhar para ganhar dinheiro e ficar rico, em nada disso. Anos e anos trabalhando para dar as melhores coisas, as melhores escolas, festas, roupas, aparelhos celulares. Ver a filha ali, com aquela roupa velha, naquela casa simples e sem conforto, sem luxo, sem um sofá macio e sem uma televisão gigante. Aquilo doía muito nele, ficou anos sem falar com ela, com raiva e dor por ela ter negado o que ele lhe deu. O problema todo, agora, resumia-se em voltar para casa depois de tomar aquele café gostoso e de comer aquela broa de milho deliciosa.
19/09/2019