O Outro Dirceu


                                                                   “Um homem casado nunca deveria ver o corpo nu de outra mulher que não fosse a sua. Os islâmicos estão certos em cobrir as suas mulheres com véus e burcas”. Pensou Dirceu, depois de ver, ocasionalmente e sem intenção, os seios de Suzana. Ficara atormentado. Levantara-se para ir ao banheiro durante o churrasco à beira da piscina na casa do Luís, que o convidara junto com o pessoal da fábrica, quando passou defronte a uma janela aberta e, lá dentro do quarto, ela se trocava enquanto ela tirava a camiseta para colocar o biquíni, ele a viu semi-nua, jovem, bonita, solteira, de seios perfeitos. Ela percebeu e não tomou qualquer atitude, ficou parada, segurando a camiseta que acabara de tirar, com os seios à mostra, feito uma estátua grega de Vênus, uma bela escultura de Rodin. Ante a sua passagem, que durou o tempo suficiente para que o cérebro dele entendesse o que via e se perturbasse, ela nem se preocupou em cobrir-se, parecia provocar-lhe, olhando nos olhos dele, que recobrou os sentidos após a admiração e acabou por se dirigir ao banheiro num misto de envergonhado, excitado e culpado.
No restante do dia, ela ficou à beira da piscina, ao lado da amiga Telma, tomando sol e se bronzeando enquanto ele parecia hipnotizado, evitava olhar, mas, mesmo não olhando, a visão da nudez da Suzana o perseguia e ele começava a entrar num mundo de fantasias sexuais em que ela aparecia para lhe fazer amor.
            Durante o churrasco, esforçou-se para evitar que Eliana percebesse os seus olhares indiscretos na direção da Suzana, continuava conversando e brincando com o pessoal, eventualmente, quando a mulher saía de perto, aproveitava para dar uma olhada. Numa destas oportunidades, o Edgar chegou perto e lhe disse baixinho:
            _ Que bunda! Hein Dirceu?
            _ Demais! – Ele respondeu.
            _ Aproveita, Dirceu! Ela está a fim...
            _ Que isso! Olha aí a minha mulher...
            _ Fizeram uma pesquisa em algum lugar aí, concluíram que, para cada homem solteiro existem três mulheres disponíveis no Brasil, sabe o que isto quer dizer?
            _ Não.
            _ Que, se cada homem ficar com uma, ainda sobrarão duas mulheres solteiras, ou elas ficam juntas, ou vão ficar com um homem casado. É pura matemática!
            _ Parece lógico.
                _ Aproveita, Dirceu! Senão aproveito eu! – Edgar completou no seu ironismo habitual.
            Dirceu não gostava muito de algumas idéias do Edgar, mas não se incomodava porque, geralmente, ele falava besteiras com a intenção de animar a festa ou alegrar alguém que estivesse meio chateado. O amigo fazia o estilo de animador profissional de churrascos de escritório. Era o que falava as besteiras, contava as piadas, provocava os torcedores adversários, bebia além da conta e fazia insinuações para todas as mulheres bonitas que estivessem disponíveis. Eventualmente, quando a bebida já o fazia perder a noção do ridículo, passava cantadas amigáveis nas mulheres casadas, e, quando a bebida o levava para o chão dos sentimentos, demonstrava a tristeza interior de quem não estava satisfeito com a vida, ao, finalmente, calar-se num canto a olhar o infinito, sem visão de que há esperança na vida. Talvez toda a alegria que ele procurava demonstrar fosse a sua maneira de espantar o seu desencanto e de esconder a sua tristeza
            Depois de voltar para a casa e colocar tudo em ordem para o merecido descanso, de trocar com a Eliana muitos comentários sobre o churrasco, e de deitar-se na cama, no escuro, percebendo a fraca luz do rádio relógio digital, ele voltou a pensar intensamente naquele fato e na Suzana, sentindo que ela estava destruindo algumas certezas, que ele tinha, como a sua fé no casamento, abalada como se um jato se chocasse contra as pilastras de uma basílica, fazendo-o sentir a tentação da carne. Ela nem se importou de expor-se. Por que ela não cobriu o busto? Por que ela o olhou nos olhos? Parecia que ela tinha esboçado um pequeno sorriso, mas ele não pôde perceber bem porque ficara muito envergonhado.
Aquela visão o destruíra. Lembrava-se de como vinha fria a sua relação com a Eliana, sexo era de vez em quando, duas ou três vezes por mês, tão fracas, tão sem tempero, não porque ele não queria mas, porque ela não se interessava e se esquivava, não desejava, não queria mais.
            De repente, acontece isto, reforçando o que já lhe dissera o Edgar, que a Suzana demonstrava grande interesse nele e há algum tempo o seu amigo percebia. Podia ser loucura dele, ela não tinha interesse algum.
Pensou no início do casamento, naquele fogo constante que durou mais de um ano, com três a quatro relações sexuais por semana, em que se sentia num estado de constante excitação. Aí os filhos vieram e a freqüência foi diminuindo junto com o prazer.
            Casado há dez anos, dois filhos, não podia negar que já lhe passaram desejos por sua cabeça, mas nunca chegou a realização de qualquer traição a sua mulher. Agora, ele sentiu-se vivo outra vez. Sentiu-se na caça, o lobo atrás da presa. Aquele desejo, aquela chama que se reacendera, que não era com a sua mulher e, por isso, um sentimento de culpa o atingira. Não que nunca tivesse sentido desejo sexual por outra mulher, mas era coisa de revista masculina, filme pornô, fotos, praia cheia de mulheres de biquíni, sempre assim, mulheres inatingíveis que ele só poderia ter num resquício de imaginação adolescente. Aquele fato era diferente porque a Suzana estava muito próxima, trabalhavam na mesma fábrica, viam-se diariamente por motivos profissionais, tinham um relacionamento amigável e, até aquele momento, ele nunca pensara nela como uma mulher que pudesse ter na sua cama, sentia desejo por ela, mas nunca acreditara que um dia pudesse acontecer qualquer coisa entre eles, mas começou a pensar nesta possibilidade.
Poderia ser a última etapa de um processo que começara há uns meses atrás quando a Suzana foi transferida para a sua seção na fábrica. De início, apenas a tratava como mais uma subordinada, mas, aos poucos, não podia deixar de perceber a sua beleza, principalmente porque ela estava sempre bem vestida e bem produzida, também porque os outros sempre comentavam sobre os seus dotes físicos entre os quatro assuntos das rodinhas masculinas: trabalho, família, futebol e mulher. E a mulher era sempre a Suzana, assunto constante no almoço ou nas paradas para um café, onde sempre se ouvia: “aquela bunda!”, “aquelas pernas!”, “aqueles cabelos! Aqueles peitos!”, “o perfume”. Mas ele nunca pensou que ela pudesse estar interessada nele, apenas achava-a bastante amável, pensando que era assim com todos, até que os colegas começaram a falar-lhe que ela possuía certa queda por ele.
Uma ansiedade muito grande começou a tomar o seu coração, revirava na cama. Ele ainda era novo, com trinta e seis anos, sua esposa tinha trinta e cinco e era uma mulher bonita e em boa forma, mas a Suzana tinha vinte e um com auréolas dos seios rosadas como se fossem de uma virgem, um corpo atlético e sensual, perfeito, sem gorduras, celulite ou estrias, bem bronzeado, sem marcas de biquíni, concluindo que, de alguma forma, ela costumava tomar banho de sol nua.
            No dia seguinte, iria encontrá-la no escritório da fábrica, iriam cumprimentar-se como faziam toda manhã e tomar um cafezinho por volta das nove e meia, em que comentariam as notícias do dia anterior. Mas aqueles poucos segundos transformaram tudo e abriram as portas de um mundo de possibilidades e de caminhos. O relacionamento dos dois não continuaria sendo o de dois colegas de trabalho. A imagem dos seios nus e do corpo bronzeado, alguns segundos e uma tarde inteira, ela sorrira? Já achava que sim. Ele queria acreditar que era tudo mentira e imaginação de sua cabeça mas ele não se sentia o mesmo. Ele sabia que o melhor a fazer era ignorar o ocorrido e se manter com a sua família e as crianças, pois valiam mais do que qualquer aventura. Afinal, apesar da fraca vida sexual, havia muito companheirismo, compreensão, carinho e objetivos em comum como a educação dos filhos para completar, o apartamento a pagar, as viagens a fazer. A razão lhe dizia que não valia a pena por tudo isto a perder por causa de uma aventura amorosa. Não poderia jogar fora o passado todo, os anos em que batalharam grana, sofreram privações, alegraram-se um com o outro e com as crianças, tudo em função de um objetivo comum. E como ficaria a construção lenta e sólida da vida a dois? Suzana nada tinha a perder. Bela, solteira, nada a perder. E tudo isso o atormentou a noite inteira e mau ele conseguiu dormir. Acordou na segunda-feira mais cansado do que quando se deitou e, o pior, acordando várias vezes durante a noite muito excitado, como há tempos não acontecia. Era o desejo penetrando o peito e ferindo o seu casamento.
            Sem saber o porquê, aquela tristeza tornou-se maior e ele quase chorou ao pensar que poderia perder a sua família e tantos anos de alegria. “Mas que coisa! Eu ainda estou aqui com a minha família e com os nossos planos para o futuro, nada aconteceu! Porque estou assim?”, pensou logo de manhã enquanto os habitantes da casa ainda não haviam iniciado a sua rotina diária. No fundo, um sentimento de culpa o tomava e ele sabia o que tinha acontecido: toda a segurança e confiança que ele tinha no seu comportamento, nas suas convicções e na sua fé ruíram através da aparição daquela moça em sua vida. Não parava de desejá-la, e isso derrubou a sua autoconfiança. Ele sabia que talvez não pudesse resistir à tentação. Antes de se casar, teve outras namoradas, entre doze e quinze anos atrás. Depois que começou a namorar a Eliana, não houve ninguém mais, até que o desejo por sexo se escondeu no cotidiano da vida familiar, na segurança do mundo que construiu para si onde se via o trabalho, os passeios, a escola dos filhos, o descanso na frente da televisão. Uma vida tranqüila e perfeita, que nem a violência anunciada nos jornais e sentida no dia a dia o incomodava pois ele se acostumara com os cadeados, os alarmes e os seguros e, mesmo nas duas vezes em que fora assaltado na rua, sabia que voltaria para o lar, onde era o seu castelo, só que, agora, este castelo começava a ruir através da ameaça que não vinha exclusivamente de fora, mas, principalmente, de dentro dele mesmo: o desejo de ter outra mulher. Ele começava a descobrir que não havia seguro para o casamento, uma vez que houvesse uma violência contra ele, nunca mais seria a mesma coisa.
            _ O quê aconteceu com você, Dirceu? – Eliana perguntou.
            _ Nada não.
            _ Mas você não dormiu quase nada, ficou rolando de um lado para o outro na cama!
            Dirceu tentou disfarçar:
            _ Acho que comi carne demais, meu estômago não está muito bom, vou tomar só um cafezinho prá não ficar com o estômago vazio... Não estou muito bem não!
            _ É, a carne estava muito boa, a gente tem que resistir à tentação da carne!
            Em sua cabeça, Dirceu pensava que outra carne estava muito boa e que tinha que resistir à outra tentação.
            _ Você vai levar as crianças na escola, Eliana?
            _ Vou, hoje estou com tempo!
            _ Ótimo, eu vou um pouco mais cedo, hoje, tenho umas coisas para resolver e o dia vai ser muito cheio!
            Despediu-se da sua mulher e saiu de casa. No caminho, passou em frente a uma igreja e rezou secretamente para que Deus lhe desse forças para tomar a atitude correta, pois ele sentia-se incapaz de saber o que fazer. No trabalho, acabou por encontrar Suzana logo no estacionamento em que a coincidência do destino colocou os seus carros um ao lado do outro e, chegando quase na mesma hora, tornara-se impossível fugir ou tomar outra atitude. Cumprimentaram-se e ela lhe perguntou se ele gostou do churrasco, “Claro, estava muito bom”, respondeu-lhe enquanto torcia para que chegassem logo na seção e cada um ocupasse o seu posto e começassem a trabalhar. Queria mais distância dela e o destino tinha que colocá-los chegando naquela hora? Ele devia ter saído mais cedo ainda, ou melhor, nem deveria ter vindo, devia ficar doente e tirar licença médica, pedir demissão imediatamente, abandonar o emprego, se possível, aposentar-se por invalidez e se mudar com a família para o Acre, tudo para não mais a encontrar e esquecer-se de tudo. Só que eles estavam ali, caminhando lado a lado e conversando sobre amenidades do tempo, “vai chover”, “não, acho que vai fazer sol“, e coisas assim, desde que, durante aquele percurso fosse possível evita qualquer palavra a respeito daquele momento em que a viu nua. Só assim ele se sentiria melhor pois por dentro, sentia as pernas estivessem bambas e os joelhos desconjuntados, mas ela quis colocá-lo em xeque e lhe perguntou de uma forma até que um pouco matreira:
            _ Quando você passou pela janela, você viu alguma coisa?
            Ela nem precisava perguntar pois ela sabia que ele a vira sem camisa e, meio engasgado, viu-se obrigado a responder:
            _ Vi que você estava se trocando... desculpe-me, eu não queria...
            _ Tudo bem, esqueci-me de fechar a janela. Só isso? Você não viu mais nada?
            _ Não! Apenas te vi se trocando, fiquei sem jeito...
            _ Não, que isso! Está tudo bem. Pensei que você tivesse visto mais alguma coisa! Não precisa nem se desculpar, sei que você não teve nenhuma intenção...
            Ele teve vontade de perguntar se a outra coisa dela seria o púbis ou se havia ainda outro segredo que ela quisesse esconder-lhe, mas a continuação da resposta que o surpreendeu:
            _ ... não tem do que se desculpar, eu não fiquei nem um pouco constrangida! Para dizer a verdade, eu não me importo muito, é que aqui no Brasil o povo ainda é muito recatado, quando eu passei um ano na Inglaterra, chegava o verão e todo mundo ia para as praias e parques e ficava totalmente sem roupa para tomar sol, ninguém tinha vergonha de nada!
            Ele não acreditava que ela lhe falava aquilo daquela forma tão natural como se o acontecimento fosse comum. Talvez ela estivesse acostumada a ficar nua na frente de estranhos, mas ele não estava acostumado a ver outras mulheres nuas pela frente num churrasco familiar e, se ela não estava preocupada, alguma coisa diferente estava acontecendo, começou a achar que o Edgar não errara e viu aumentadas as suas chances de uma noite de amor, apesar desta idéia pesar-lhe muito na consciência.
            Durante o restante do dia, sentiu-se mais leve, pois pensara que o encontro pudesse ser pior, mas ela fez com que ele relaxasse a tensão que sentira. Só que este relaxamento não podia durar muito porque era impossível esquecer-se da sua família e, ao chegar em casa, colocou a sua pasta ao lado da estante, tomou um banho e foi jantar e conversar com a esposa. Falaram do dia, de alguns comentários sobre o churrasco e a Eliana até brincou, dizendo que estava com ciúmes da Suzana, porque ela estava desviando a atenção de todos os homens para si, e que todos eles estavam babando por ela, frisando um “inclusive o senhor Dirceu”, ele desconversou e disse que não tinha nada a ver com ela. No íntimo sabia que era uma grande mentira pois ela  o perturbara realmente.
            Eliana e Dirceu, como casal, praticamente nunca brigaram, pequenas desavenças houveram e em qual casal não há? Davam-se muito bem desde o tempo de colégio quando nem pensavam em se casar ou namorar. Sempre conseguiam chegar num acordo a respeito de tudo e pareciam encaixar-se tão bem, graças ao bom humor dela em todos os aspectos, até o pouco sexo era compensado por isso. Agora ele cometera uma pequena mentira que o preocupou por ser diferente de outras pequenas inverdades ditas. E o fez pensar no passado e em porque se casara com a Eliana. Nunca pensara nisso em dez anos de casamento e começou a relembrar os tempos de antes do noivado. Quando sua vida a dois começou? Não estava pensando em sentido civil e oficial, pois ele tinha a data de casamento impressa em uma certidão devidamente registrada no cartório, com padrinhos, testemunhas e tudo o mais. Mas ele pensava na sua vida a dois, no seu casamento. Tentou lembrar-se daquelas promessas, dos motivos que o levaram a casar-se, da paixão avassaladora que sentiu pela Eliana. Lembrou-se de uma noite que conversaram muito sobre sonhos e frustrações, em que ela se abriu totalmente a ele, contando-lhe decepções amorosas, sonhos, tristezas passadas na família, misturando tudo com um choro triste de quem sofreu muito e parecia fadada a viver só. Será que foi aquela tristeza que o comoveu e destruiu o coração de pedra que ele trazia no peito até então? Talvez sim. No entanto, as brincadeiras amorosas do namoro também o prenderam, a intimidade conquistada o prendeu, a beleza de Eliana o prendeu e, acima de tudo, aquela vez em que sentiu o desejo incompreensível de fazê-la feliz, de lutar para realizar os sonhos dela, esquecendo-se completamente dos seus. Seu sonho passara a ser fazê-la feliz, somente isto. Ao fazê-la feliz ele começou a sentir-se feliz, e hoje? Ele estaria fazendo-a feliz ou afundando a vida dela na tristeza? Certamente o desejo sexual que sentia pela Suzana a faria triste, pensava e padecia por estar casado com uma e desejar outra.
            Passara os últimos dez anos anulando-se para trazer a felicidade à sua família. Incentivou a mulher a manter-se no emprego, trabalhou milhares de horas extras para que tivessem uma boa renda, dedicou-se bastante até que percebeu o primeiro sintoma: a vida seria sempre aquela. O trabalho como engenheiro lhe trazia um bom ganho mas não mudava sua rotina, os mesmos amigos dos últimos anos, a falta de desafios.
            Pensou que aqueles homens que exploraram o mundo é que foram felizes, tinham um desafio novo a cada dia e não tinham que se preocupar com as suas mulheres. O pensamento mudou, não era o desafio, era a aventura que ele queria, sair da rotina, dormir com outra mulher e era Suzana quem o tentava para sair da rotina e partir em busca de uma aventura. O que ele entendia é que a sua vida ressurgira ao ver aquela moça e a desejá-la. Ele voltava a sentir-se no mundo e, ao mesmo tempo, não queria perder a segurança do casamento, não queria mudar o estado das coisas aparentes conseguidas até aquele momento. Seria possível mentir, trair e manter as aparências sem que a Eliana deixasse de amá-lo? Um bilhão de pessoas já fez isso, por quê ele não?
            Dirceu lembrou-se da infância passada como um órfão porque seu pai estava sempre fora de casa, ou trabalhando, ou no bar, ou no futebol, ou em algum lugar que ninguém sabia onde. Quase nunca o via e, quando ele lhe dirigia a palavra, era para recriminá-lo por alguma arte que aprontara. Na infância, não achava justo que o pai lhe batesse porque ele nunca sabia o que estava acontecendo e resolvia tudo na pancadaria, fosse uma briga entre irmãos ou uma falta de vontade de fazer algo que a mãe quisesse, o pai queria sempre ficar sossegado, sem que ninguém o atormentasse. Somente quando começou a se destacar no time de futebol da escola é que o pai começou a perceber que ele existia e a sentir-se orgulhoso do filho, ele sempre dizia: “Meu filho vai ser um Pelé”. Claro que era exagero do pai, mas ele gostava porque o irmão mais velho, Ezequiel, sempre era muito quieto e não se metia em conversas.
            Depois de alguns anos, Dirceu não achou justo quando soube dos vários casos com diversas mulheres que seu pai teve, mas era tarde demais para fazer alguma coisa porque só soube após a morte dele, que carregou para o caixão aquela imagem de ruim, ausente, injusto e traidor. Das brigas com o pai na adolescência e juventude, guardou muito rancor e nunca se resolvera, não pôde dizer-lhe tudo o que achava. Justamente por saber da dor que sentira e da que o pai causara a sua mãe, Dirceu prometeu que seria diferente, que ia fazer tudo pela mulher com quem se casasse e seria sempre fiel. Realmente, não tinha esquecido a promessa mesmo agora que o casamento se transformara em rotina e aparecera a Suzana para chacoalhá-lo e colocar as suas convicções e a promessa contra a parede.
            No dia seguinte, em uma reunião de trabalho na fábrica, Dirceu e Suzana estavam conversando a respeito de um produto que a empresa estava desenvolvendo, aproveitando um momento em que os dois ficaram ligeiramente separados do grupo, ela lhe perguntou:
            _ Vamos almoçar juntos amanhã? Em vez de almoçar aqui na fábrica, a gente podia ir à cidade. O que você acha?
            Sem estar preparado para responder sobre um assunto tão inesperado, ele acabou respondendo:
            _ Talvez possamos, mas eu não tenho certeza, amanhã a gente vê, podíamos ir a um restaurante que tenha comida por quilo, a gente escolhe o que quiser.
            _ Tem um muito bom lá na Rua Quinze de Novembro!
Ele passou o resto do dia pensando no almoço do dia seguinte, perguntando-se porque ela o convidara para almoçar, seria a sós? Será que ela convidaria mais alguém da fábrica? Ele tremia por dentro, tamanha a insegurança que sentia, seus alicerces pareciam construídos sobre a areia, ele deveria recusar e inventar alguma desculpa? O que ela queria com ele? Iriam apenas falar de negócios ou era outro assunto que ele tanto temia levar adiante? Apesar da razão martelar-lhe a consciência para que ele dissesse “não posso, deixa para outro dia que eu tenho um compromisso”, maldito pênis  que não pensa e faz a boca respoder.
E ele acabou confirmando com ela no final da tarde e o Edgar, que não perdia nada do que acontecia naquele escritório, ao perceber a história do convite para o almoço, apenas lhe disse, discretamente, sem que ela ouvisse:
            _ Aí hein! Essa aí está a fim, tu vais comer muito bem neste almoço, imagine a digestão, com a barriga cheia, todo satisfeito.
            _ Não tem nada a ver, Edgar. Nada a ver!
            _ Nada a ver? Eu não sei de nada! Só sei que esta mulher é gostosa demais!
            Dirceu ficava com um pouco de raiva do Edgar por ele ficar dando estas indiretas, mas era apenas um almoço, um inocente almoço que ficou revirando um dia inteiro no estômago, antes mesmo que acontecesse. No fundo, ele sabia que nada de inocente poderia haver num almoço àquela altura.
            Na manhã seguinte, ele acordou mais cedo, fez a barba bem feita enquanto pensava na Suzana.
            Eliana percebeu nele um ar mais alegre e fez um comentário:
            _ O que aconteceu, Dirceu? Parece que você está mais solto hoje! Vai receber o pagamento?
            Brincando, ele respondeu:
            _ Nada, acho que tive uma boa noite de sono, estou mais tranqüilo, sei lá... – ele brincou, abraçando-a e passando a mão pelo corpo dela – talvez seja vontade de alguma coisa!
            _ Fico feliz que você tenha vontade de alguma coisa!
            Apesar de brincar, Dirceu temia que estivesse se denunciando em todos os seus atos, seria possível que todos percebessem nele alguma coisa diferente? Mas ele estava muito excitado com o encontro, apesar do sentimento de culpa que continuava, mas era só um almoço entre dois colegas de trabalho, repetia a si mesmo, tentando minimizar a importância do encontro. Ele sentia que este almoço poderia ser a mudança radical como se o urso hibernando por um longo inverno acordasse na primavera e saísse a caçar. As palavras que fossem ditas no almoço poderiam mudar toda uma vida e ele queria muito que qualquer coisa impedisse tudo isso de acontecer, porque a lembrança de Eliana e dos filhos o entristecia.
Escapar do assédio da Suzana também estava nos seus planos porque sabia que poderia colocar sua vida toda no lixo, perder a família seria a sua destruição, dizia-lhe a razão, mas o tesão por aquela mulher bonita o impulsionava a seguir. Agora não era mais somente o desejo, outras coisas aconteciam, por exemplo, os colegas homens do trabalho, sempre nas conversas de cafezinho, na surdina, perguntavam-lhe se tinha rolado alguma coisa entre eles, e se a Suzana era tão boa de cama quanto gostosa, e Dirceu se via obrigado a negar tudo porque a verdade era que nada acontecera e talvez nunca acontecesse, e existia ainda a possibilidade de ela não ter qualquer interesse e tudo ser apenas uma fantasia que ele estava colocando em sua cabeça, ele nem tinha certeza se ela queria mesmo alguma coisa com ele, ela nunca lhe disse nada e, no fundo, era isso que ele queria, que ela lhe dissesse alguma coisa, desse-lhe um rumo das suas intenções para que ele soubesse onde poderia chegar, ele queria que ela lhe dissesse algo como “eu estou louca por você e quero transar contigo”, ou alguma coisa totalmente oposta como “eu só queria esclarecer que não quero nada com você apesar do que o pessoal do escritório possa ter falado”. Ele só queria um sinal que lhe indicasse o que fazer, apesar de que a razão insistia que o melhor e mais correto era afastar-se completamente dela.
            E, durante o almoço, falaram de assuntos que não se referiam ao trabalho como música, cinema, notícias fresquinhas e até futebol. A conversa corria relativamente leve e Dirceu conseguiu relaxar e não se preocupar com as coisas que ocorreram antes, parecia até que ela estava indicando que tudo deveria continuar como sempre foi, apenas bons colegas de trabalho. Isto até que ela começou a falar de coisas mais íntimas e lhe disse que nunca teve sorte com os namorados:
_ Meu primeiro namorado morreu de acidente de moto, estava correndo demais e bateu na traseira de um caminhão.
_ Que triste! – Respondeu com uma cara de horror.
_ O pior não foi isso...
_ E o que pode ser pior?
_ Meu último namorado...
_ Morreu também?
_ Não. Trocou-me por outro homem!
_ Nossa, isto é terrível mesmo! Ainda se fosse por outra! Era mais fácil de você brigar! Mas por outro!
_ E a vida de casado? Como que é? Não é meio maçante?
            Apesar de sentir-se um pouco chateado com o seu casamento, obviamente, não quis admitir para ela e não admitiria para ninguém.
            _ É uma boa vida e estar casado é melhor do que estar solteiro. Há mais vantagens em ser um homem casado – respondia assim apesar do decote sensual e do vestido curto que revelava formas sinuosas, que o fazia pensar porque não era solteiro naquele momento.
            _ Que vantagens tem o casamento?
            _ Por exemplo, a solidão acaba. Casado, a gente nunca mais sente a solidão. Outro exemplo, sexo é mais fácil e melhora na medida em que a gente conhece melhor a mulher.
            _ Minha mãe vivia me dizendo para não casar nunca! Que casamento era a pior coisa do mundo. Meus pais viviam sempre brigando, meu pai era um carrasco, instalava um reinado de terror sempre que queria. Ninguém podia nada! Acho que ela era extremamente solitária porque agüentava tudo isso sozinha..., e você acha que ela gostava de ter sexo com aquele carrasco? Estas duas coisas já estão descartadas.
            _ Conheço um pouco isso! Meu pai era um pouco assim também!
            _ E quanto à vida sexual? É verdade isto que você está dizendo? Que melhora com o tempo?
            _ É, vai melhorando com o tempo! Posso dizer que agora cada um sabe exatamente o que o outro gosta e como o outro sente prazer!
            _ Então você agora é um expert em sexo!
            _ Com a minha mulher sim, com outras, não posso dizer, pois não tive outras depois da minha mulher.
            _ Quer dizer que você nunca traiu a sua mulher?
            _ Não, nem pretendo fazer isto. Casamento, para mim, é muito importante. Se todos tivessem noção da importância da família e do casamento, nunca trairiam os seus parceiros.
            Depois que ele disse isto, ela falou bem baixinho, inclinando o tronco para frente, exalando um perfume que invadiu as narinas dele, olhando em seus olhos, só para ele de forma que ninguém mais ouvisse:
            _ Eu queria saber como é sentir orgasmo... ter um prazer de verdade... de que tanto se fala.
            Ele engoliu um naco de frango se mastigar, quase engasgando e preferiu não comentar nada e começou a falar que os filhos trazem muita alegria também e compensam muitas coisas do casamento.
            _ Mas todo casamento é um aprendizado constante. A gente está sempre aprendendo. Todo dia.
            Ela interrompeu o assunto para ir ao banheiro retocar a maquiagem e arcou o tronco para a frente para desvencilhar-se da cadeira, a força da gravidade puxou o pano do vestido para baixo revelando ainda mais, pelo decote, as formas daqueles seios que ele já havia visto, não mostrava tudo, mas o que aparecia era suficiente para deliciá-lo, depois, por estar apertado dentro do restaurante, ela saiu esbarrando o lado e as nádegas no braço dele, “com licença”, ela pedia, roçando-o levemente, se naquele momento o pênis gritasse, o restaurante inteiro teria ouvido. Ela estava se insinuando ou seria apenas uma coisa casual como fora aquela tarde do churrasco? Ainda mais falando que queria sentir um orgasmo para um homem!
            Ela o provocava descaradamente, mas ele tentava não insinuar nada que sugerisse um contato entre ambos diferente do relacionamento de trabalho, mesmo desejando cada vez mais. O que ele podia fazer? Tinha uma família bem formada e uma companheira fantástica, se bem que achava que lhe faltava sexo. E Suzana não tinha nada a perder, queria apenas o prazer, sentir o orgasmo, e ficava se oferecendo, talvez ela quisesse algo mais, considerando que ele ocupava uma posição influente dentro da fábrica. Que ela estava a fim era claro demais, quais eram os motivos?
            Quando retornaram à fábrica, ela voltou com as pernas bronzeadas à mostra e cruzadas. Que vontade ele teve de passar a mão naquelas pernas! E sem querer acabou havendo um toque na hora em que ele mudava a marcha, ela moveu as pernas, descruzando-as e esbarrando na mão dele. Depois ele ficou achando que ficou até um perfume, mas que soubesse, nenhuma mulher usava perfume nas pernas. Mas ficou também a sensação da pele macia e lisa, sem pelos, que o fez ficar uma segunda noite sem dormir, tanto por isto quanto pelo fato de que, nesta noite, ele quis fazer amor com a Eliana e ela aceitou o convite e, como andava muito excitado com os acontecimentos, conseguiu sentir um prazer especial como há algum tempo não sentia, sendo que a sua mulher pareceu gostar também e nem reclamou que teria que acordar cedo ou que estava cansada. Naquela noite ele voltou a se lembrar de quando sua vida com Eliana começou.
            Eliana, que ele reencontrou depois de cinco anos quando ela voltara para a cidade depois de concluir o curso de administração em São Paulo. No tempo de colegial, eles tinham uma excelente amizade, saíam juntos mas nunca rolou nada. Quando se reencontraram, ambos sozinhos, sem compromisso amoroso, resolveram matar saudades das conversas e começaram a sair juntos, até porque após a faculdade fora, ficaram um pouco deslocados e perderam contato com os outros amigos do tempo de colégio, e perceberam que tinha ainda mais coisas em comum do que possuíam antes. Situavam-se mais ou menos na mesma situação, tinham um emprego e algum dinheiro para gastar. Começaram um namoro e depois de um tempo a ir ao motéis da cidade. Quando os pais dele resolveram mudar-se, ele resolveu que hora de desvincular-se da família, mesmo porque já não agüentava mais tanta cobrança em casa, e alugou um apartamento, onde começaram a ocorrer os encontros amorosos e começaram a ter uma primeira experiência de casamento, quando passavam os finais de semana juntos, mesmo com a implicância dos pais dela que, ao fim de algum tempo, acostumaram-se à nova situação. Foi esta experiência que o levou a gostar da companheira e, junto com aquela noite da revelação, fê-lo decidir que havia um caminho novo a seguir, e de ele poderia ser feliz e fazê-la feliz.
            A vida a dois começara naquela noite em que ela se revelou toda a ele, contando-lhe todas as tristezas e desilusões e expondo-se, ficando a mercê dele. Revelar-se, sentir-se e fazer feliz foram os verbos que o conduziram nos últimos dez anos, ainda que, de vez em quando, ele esquecesse de conjugá-los.
            Mas após aquele almoço, o clima entre Dirceu e Suzana era de expectativa. Se de um lado, o dela, havia este assédio, do outro, o dele, havia o medo. Ele apenas não conseguia entender porquê ela o assediava daquele modo tão descarado, talvez ela o achasse charmoso ou bonito, o que melhorava seu ego, ou ela seria adepta de fazer sexo com as pessoas mais graduadas na hierarquia da fábrica, mesmo não sendo tão alto o cargo dele, ele não era qualquer um, pois possuía uma influência grande naquela seção, tendo um salário diferenciado. Por quê ele? Havia outros chefes se bem que ele aguardava uma promoção para a diretoria e talvez uma estadia no exterior para aprimoramento. Se fosse promovido poderia levar a Suzana para um cargo melhor com um salário melhor. Seria isso?
            Nos outros dias o clima ficou assim do mesmo jeito, só ele não percebera que ela estava mais solta, houve até outros toques de mão, quando iam pegar uma caneta ou quando era necessário passar-lhe algum documento, olhavam-se e, numa vez, ele quase não resistiu à tentação de beijar aquela boca carnuda a menos de vinte provocantes centímetros da boca dele. E como sentiu vontade de beijá-la! O clima arrefeceu um pouco quando um diretor pediu a ele que fechasse com urgência um relatório importante e, durante dois dias, ele trabalhou exclusivamente nisto, concentrando-se demais no trabalho para pensar em outros assuntos e, ao esfriar a aproximação, ele começou a achar que era tudo imaginação, uma ilusão sem sentido pois nada lhe faltava e que nada disso poderia ser levado a sério, tudo era apenas uma brincadeira, coisa de quem quer deixar um ambiente mais feliz. Com todos ela era atenciosa, solícita e alegre. Ele não podia deixar-se enganar por algo que não estava acontecendo, tudo deveria ser apenas ilusão.
            O que o incomodava mesmo era o brincalhão e sarcástico Edgar, que a tudo observava e a tudo ironizava, há tempos lhe perguntara na surdina:
_ E aí, já comeu? - referindo-se à Suzana, e o pior, completava: _ Se não comeu, Como eu!
E esta brincadeira o incomodava, pois quem era ele para falar estas coisas? O que o Edgar sabia a respeito dela ou do que acontecera se ele não comentava nada com ninguém?
            Talvez Suzana comentasse suas aventuras sexuais com alguém que o Edgar conhecia. Poderia ser com a Telma, que era muito amiga dela e com quem ele sempre estava conversando e até uma ponta de ciúme bateu na cabeça do Dirceu quando ele achou que a Suzana era dele e de ninguém mais e ninguém tinha o direito de falar alguma coisa dela! Puro machismo e logo pôs o pensamento no lugar pois ele era um homem casado e ela era solteira. Talvez Edgar estivesse transando com a Suzana e o jogo era para despistar a todos, Dirceu descartou esta hipótese pois, se o Edgar estivesse com ela, já teria falado para todos os homens da fábrica.
            Dirceu convenceu-se de que o episódio do churrasco e o do restaurante foram meras coincidências, apenas a sua imaginação estava funcionando demais e pensando coisas que não tinham nada a ver e nunca iam acontecer, pois Suzana não queria nada com ele e a sua vida sexual com a Eliana havia melhorado, tendo atingido a incrível marca de duas vezes em uma semana. Convencera-se de que tudo fora uma ilusão.
            Mas o chefe pediu-lhe que fizesse hora extra num dia em que isto não estava programado para que ele terminasse um relatório urgente que seria entregue aos diretores norte americanos que visitariam a fábrica. Dirceu avisou a sua mulher por telefone e ela lhe disse “Tudo bem, vou deixar a sua janta pronta, é só esquentar no microondas”, e depois de uma hora e meia, ele ainda não terminara aquele relatório, faltava pouco, coisa de quinze minutos, quando ele percebeu que estava sozinho no escritório da fábrica. Já passava das sete da noite quando ele terminou, arrumou bem a sua mesa e se preparou para sair.
            Dirceu arrumou os seus papéis, colocando-os na sua pasta de couro. Desceu as escadas e chegou à recepção, no saguão, deparou-se, surpreso, com a Suzana, sozinha, como se o esperasse, sentada num dos sofás lendo uma revista, ficando os dois a sós. Querendo demonstrar indiferença ao fato, ele perguntou:
            _ O chefe também lhe pediu algum trabalho extra hoje?
            Ela o avistou e respondeu:
            _ Não! Estou sem o meu carro e perdi a carona com o João. Eu o vi trabalhando e não quis incomodá-lo, por isso fiquei esperando que você terminasse, você poderia me dar uma carona até a minha casa?
            _ Posso.
Ele tentou demonstrar indiferença na voz e não perguntou porque ela não foi de ônibus circular que passava na avenida, ou de táxi, ou até carona com qualquer outro funcionário de outra seção. Sentiu que havia alguma coisa no ar.
            No momento em que ela entrou em seu carro, um milhão de coisas passaram pela sua cabeça. Devia só levá-la, devia passar a mão na perna dela para sentir aquela pele suave de novo ou poderia ir direto para um motel? Quando chegasse no prédio dela, poderia convidar-se para entrar ou despedir-se imediatamente sem que ela pudesse pensar em qualquer coisa?
            Naquele breve caminho, falaram de poucas coisas, assuntos inócuos que se prolongavam como um prelúdio mau escrito. Na cabeça dele, os pensamentos passavam da euforia à culpa ao lembrar-se da mulher e das crianças. Retornavam cenas daqueles tempos de juventude em que saía com uma garota sem destino à noite e iam batendo papo furado até que parassem em algum bar da hora, se houvesse clima, prosseguiriam até um lugar mais calmo para namorar dentro do carro e fazer de tudo, menos transar e, em outras oportunidades, quando já havia clima, iam para um motel. Isto já tivera o seu tempo e ele era um pai de família. Insistia em pensar, como que para enganar a si mesmo, que estava apenas levando uma colega de trabalho para casa.
            Este inocente entendimento teria prevalecido se ela, ao chegar, não o convidasse para entrar e ver as fotos que a Telma tirara daquele churrasco que ocorrera na casa do Jorge. A razão e o tesão entraram em conflito e ele hesitou por um segundo dizendo que já estava tarde, ela riu:
            _ Tarde para mim é depois das três da manhã!
            _ Quando eu era solteiro, eu também achava isso! Agora eu tenho família e a coisa mudou. Qualquer exceção é avisada.
            _ São só dez minutinhos, só subir, ver as fotos e sair rapidinho.
            Ele se convenceu mais pelo tesão.
            _ Tudo bem! Vamos.
            E subiram.
            Dentro do pequeno apartamento de dois quartos, sala, cozinha e banheiro, ela retirou as fotos da estante da sala e as deu nas mãos dele.
            _ Eu vou ao banheiro e já volto, vá olhando as fotos.
            Ele começou a ver uma a uma, deliciando-se com as fotos em que ela aparecia de biquíni. Após terminar de vê-las e, como ela ainda demorava um pouco, ele circulou pela sala, aproximou-se da estante e viu umas fotos separadas próximas a uns livros, curioso, pegou-as e se surpreendeu. Eram três fotos da Suzana totalmente nua dentro de um quarto. A excitação tomou-lhe o corpo e o pênis intumesceu. Por quê ela quis mostrar-lhe as fotos? E quem tirou estas em que ela estava nua? Ele quis pegar uma e guardar dentro da sua pasta para apreciar às escondidas mas desistiu da idéia ao ouvir a porta do banheiro se abrindo, rapidamente, colocou de volta as fotos na estante, só que ela percebeu, ao virar-se para falar alguma coisa, Dirceu deu de cara com a Suzana vestida apenas com uma camiseta bem leve, que a cobria até a metade das coxas.
            _ Desculpe-me, eu não agüento ficar com aquelas roupas dentro de casa, prefiro ficar mais à vontade, e aí? Gostou das fotos?
            Se ele dissesse que não, mentiria.
            _ Gostei, ficaram muito interessantes.
            Colocou-as em cima da mesa, ela pegou o álbum e sentou-se no sofá, permitindo que a camisa virasse o suficiente para que a calcinha aparecesse, sem contar que ele percebia os mamilos dela por baixo do tecido fino, ela estava sem sutiã. E, sem discrição, ao olhar para as fotos que estavam na estante, falou, esticando o braço para pegá-las:
            _ Estas fotos não deveriam estar aqui! Você as viu?
            _ Por acaso eu vi, desculpe...
            _ Não tem importância, gostou?
            Muito sem jeito ele respondeu:
            _ Gostei... quem as tirou?
            _ Um fotógrafo amigo meu! Mas, vou pedir-lhe um favor, não comente com o pessoal da fábrica, não! Lá tem muita gente preconceituosa, você já viu as fotos mesmo, não dá para esconder!
            _ Não, que isso! Não vou falar nada para ninguém!
            Ela se levantou e pegou um drinque no bar, oferendo-lhe a bebida, Dirceu, àquela altura, suava frio, pois percebia que ela estava se oferecendo demais, era a chance de uma hora de sexo com uma das mulheres mais lindas e gostosas que já vira na sua vida e, ao mesmo tempo, não queria ficar, pois, transar com aquela mulher, mudaria os rumos da sua vida, não transar e ir embora, poderia fazer com que passasse por trouxa, brocha ou homossexual.
            Sentiu-se numa situação embaraçosa e o nervosismo falou junto com a razão e ele se lembrou “de repente” que prometera passar no shopping para comprar alguma coisa para a sua filha e, usando isto como pretexto, levantou-se e se arrumou para sair, tentando disfarçar, com a pasta, aquele pênis que insistia na sua dureza, àquela altura, mais duro do que diamante. Ela se aproximou, encostou seus peitos nele, provocando-o, e lhe disse com aquela boca carnuda e sensual:
_ Que pena! É tão cedo ainda! Espere um pouco mais, eu tenho uma pequena lembrança para você, deixa eu ir buscar.
Ela foi até o quarto e trouxe um envelope, colocando-o nas mãos dele.
_ Você só pode abrir na sua casa, é para você guardar e se lembrar de mim!
Sem pensar em abri-lo, colocou o envelope na sua pasta e se despediu:
_ Obrigado, mas eu vou indo, tchau!
            Ela o acompanhou até o elevador e, quando este chegou, ela se aproximou novamente e disse:
            _ Só para esta noite não passar em branco!
            E o beijou na boca. Depois, virou-se e, de costas para ele, tirou a camiseta, mostrando-se de costas, nua, ao vivo e ele, segurando a porta do elevador, ainda assim resistiu ao ímpeto de voltar correndo, agarrá-la e transar com ela ali mesmo no corredor como se fosse um animal selvagem a ponto de quase estuprá-la. Aquela mulher formosa foi andando lentamente para o apartamento enquanto ele ficou parado, olhando-a, junto com ela, ele sentia caminhar a eternidade daqueles segundos, ainda mais fortes do que a primeira vez que a vira nua na casa do Jorge, e sentia a incapacidade de tomar a atitude definitiva da traição que parecia provar-se cada vez mais impossível dentro dele, ainda que o desejo fosse tão forte. Quando ela chegou na porta do apartamento, para provocar ainda mais, jogou a camiseta para dentro, tirou a calcinha, virou-se de frente e deu-lhe um adeus durante um tempo suficiente para que ele a visse totalmente nua e pudesse apreciá-la dos pés à cabeça. Pôde pensar apenas que ela era completamente maluca, absurdamente oposta ao que parecia na fábrica.
            Ele resistira mais por ter ficado paralisado pela surpresa e pelos anos de casamento que lhe faziam a história do que por não a desejar. Mais por medo do futuro do que pelo impulso sexual, mais pelas suas convicções que, apesar de abaladas, ainda não haviam se acabado do que pela chance imperdível, que ele perdera e porquê, antes de tudo, lembrara-se de Eliana e dos filhos.
            Antes de ser um homem movido apenas pelos impulsos sexuais, descobriu-se marido e pai, e que talvez nunca pudesse trair esta sua condição e talvez passasse a vida inteira neste impasse entre o desejo, a paixão, o respeito e o amor, além do passado construído ao lado de uma mulher, mesmo que ele não tivesse tanta certeza se ainda a amava.
            Afinal, em que lugar do seu coração ainda residia algum amor por Eliana? Tantos anos se passaram e ele começava a duvidar daquele amor, por quê a vida não era mais como fora no início do casamento? Onde estava aquela paixão? Quanto mais pensava, mais difícil era encontrar a resposta que desejava, e sentia que deveria procurar ainda mais longe, talvez lá no fundo da alma, no âmago do coração, e escavar o mais profundo poço para encontrar todos aqueles motivos que poderiam dar-lhe a força e a direção da sua vida. Pela primeira vez ele sentia que as coisas fugiam do seu controle e só uma palavra lhe veio à mente: crise.
            Dirceu dirigiu até a sua casa como quem não quisesse chegar. Bem que ele gostaria que houvesse uma máquina que resolvesse problemas pessoais, onde se apertasse um botão e tudo se resolvia, poderia transar com a Suzana e, ao apertar o botão, tudo bem, sentiria o prazer sem que estivesse traindo a sua mulher, tudo resolvido da melhor maneira para ele. Pena que o computador em sua casa não fazia isso e nada faria, agora, que a vira totalmente nua e que tinha certeza das intenções dela, e que fora beijado, sentindo a tentação dos lábios na própria carne. O beijo da tentação e da traição.
            Dirigia feito um autômato quando se lembrou de limpar a boca, procurou algum papel no carro e não encontrou, limpou-a com as costas da mão e a mão naquele pano sempre sujo que guardava no porta-luvas. Sentia vontade de masturbar-se mas não poderia fazer isto dentro do carro, seguiu em frente, vendo a iluminação noturna que tantas sensações estranhas lhe causavam.
            Fingiu-se cansado e abatido ao chegar em casa, não quis conversar com ninguém, indo direto para o chuveiro, banhou-se, pôs o pijama e deitou-se. No escuro do quarto e só na cama de casal, sem ninguém por perto, com os filhos já crescidos, começou a sentir algo que já havia esquecido há muito tempo, a solidão. E como ela veio forte! Parecia não ter ninguém a quem recorrer e não queria contar para a Eliana tudo o que se passava, pois não queria correr o risco dela não acreditar. Tentava encontrar o motivo que o fazia sentir-se solitário agora quando antes não se percebia assim, mas não precisou procurar muito porque sabia perfeitamente que, antigamente, somava-se à sua mulher e agora, dividia-se com ela, antes, estava unido e, agora, distante dela e dos filhos.
E esta solidão mostrou-se mais perversa e dolorida do que aquela que sentia aos vinte anos. Pois, quando jovem, a solidão era muito mais fictícia, pois sempre havia a esperança de encontrar uma moça bonita, um amor novo, e de passar a noite num motel acompanhado. Também ele, naquela época, queria ficar sozinho para ter as mais diversas oportunidades, ficando sempre livre e disponível para eventuais encontros interessantes.
A solidão atual era muito mais perversa porque ele passara a vida construindo uma família sem pensar em ficar sozinho. De repente, vira-se só. Havia uma mulher querendo-o na cama a todo custo, mas havia um preço muito alto para se pagar por ela, que não se media em nenhuma unidade monetária da Terra: a perda da família que construíra. Aos vinte anos não havia preço algum por alguma eventual traição, somente um leve remorso que passava logo. Percebeu como havia sido um crápula na juventude, não dando valor para os sentimentos das pessoas com quem conviveu.
Preocupada, Eliana entrou no quarto e deitou-se ao lado perguntando sobre o que acontecera, ele mentiu mais uma vez dizendo que trabalhara demais e estava cansado, quando se lembrou do envelope que a Suzana lhe dera, mas não quis levantar-se da cama para buscá-lo, tanto porque estava realmente cansado quanto não podia levantar-se naquela hora temendo despertar suspeitas na esposa. O que Suzana teria entregado a ele? Uma carta de amor, um convite para ir a algum lugar, uma passagem para viajar? Estava delirando e resolveu esquecer, veria no dia seguinte pois tinha certeza de que ninguém mexeria na sua pasta. Deitado, com a mulher ao lado, adormeceu.
No dia seguinte, acordou com os beijos da Eliana no seu rosto, ouvindo:
_ Bom dia! Como vai o trabalhador do Brasil? São sete horas, você vai se atrasar se ficar mais tempo na cama.
Ele se levantou rápido, trocou-se e correu para a cozinha, o café já estava pronto e os seus filhos estavam à mesa, cumprimentou-os, tomou um café com pão e saiu apressado. Eliana ficou para levar os filhos à escola e depois sair para o trabalho dela. Antes de sair, ela encontrou um envelope branco ao lado de onde o marido costumava deixar a pasta na estante, sem nome e sem endereço, achou que fosse algum documento dele e o deixou ali mesmo na estante, onde a família se acostumara a deixar as suas cartas. O dia para ela ainda traria muitos afazeres e ela não podia perder tempo, pensou em lhe avisar sobre o envelope por telefone, mas sabia que não daria tempo para ele voltar sem se atrasar ao trabalho, se fosse algo muito importante, ele aproveitaria a hora do almoço para voltar e pegá-lo.
Ela sentia que o Dirceu andava muito estranho nos últimos dias, percebia-o diferente, com muitas variações de humor e de interesse. Um dia mostrava-se triste e abatido, no outro dia, estava excitado e cheio de vontade de sexo. Hoje, quase perdera a hora, coisa que nunca acontecera, mesmo em outros tempos em que ele fizera horas extras até mais tarde. Percebia que ele andava nervoso nos últimos dias e que fazia algum tempo que eles não conversavam sobre assuntos mais profundos da relação deles.
O marido reclamava de um tal relatório urgente que vinha fazendo há mais de um mês para a chegada de uns norte americanos à fábrica e ela sabia que ele estava muito estressado e que precisava tirar umas férias, que só aconteceriam dali a seis meses ainda. Pensou que precisavam planejar as próximas férias, talvez fossem apenas os dois, tinham algum dinheiro e poderiam fazer um cruzeiro pelo Caribe. Seria muito romântico, depois de dez anos de casados, até para comemorar de um jeito especial, sem os filhos, que estavam bem crescidos e podiam ficar com algum dos avós.
Eliana sempre esperava alguma coisa mais romântica do marido, um convite para jantar no meio da semana ou um simples buquê de flores, só que faziam muitos anos que ele não ligava mais para isso. Era só o trabalho, o trabalho e o trabalho. Fim de semana era ou praia ou churrasco com os amigos no domingo, ou pizza no sábado à noite, ou uma visita os pais dela ou dele, alternadamente. Não curtiam mais bares e nem restaurantes, cinema era algo muito raro, teatro nem pensar. A vida ficara muito certa e desinteressante, pelo menos nas férias, eles sempre viajavam para algum lugar gostoso e diferente.
Mas o cotidiano era muitas vezes chato e massacrante. Sempre a mesma rotina: levar as crianças na escola e ir para o trabalho de meio período como assistente social da prefeitura. Voltar, buscar as crianças, almoçar e, à tarde, levá-las em seus vários cursos, judô, natação, dança, voltar e esperar o marido chegar, invariavelmente, com a mesma seqüência de atos, o portão eletrônico se abria, guardava o carro, desligava-o, pegava a pasta, batia a porta, tudo isso enquanto o portão ia fechando-se, entrava em casa, colocava a pasta na estante da sala, dizia: “Querida, cheguei”, beijava-a, falava alguma coisa com as crianças, ia tomar um banho e, depois, sentava-se à mesa para o jantar, que tinha que estar pronto. Conversavam um pouco, depois iam para a sala ver os programas da televisão. Às vezes, faziam um lanche à noite, um hambúrguer ou um cachorro quente, de vez em quando pediam uma pizza. E era assim que a vida seguia por alguns anos, sem surpresas, as crianças crescendo, poucas coisas acontecendo, que ela se perguntava, às vezes, onde se guardava a emoção da vida, melhor, onde se escondeu a paixão pela vida. Nos últimos anos, era só isso, tão sem emoção e sem paixão, tão diferente do que sonhara para a vida a dois, casada ao lado daquele homem interessante e tão cheio de gana, de vida, de futuro aos vinte e poucos anos. Por onde andava aquele rapaz charmoso, não muito belo, mas charmoso e cheio de futuro de quinze anos atrás? Talvez eles tivessem casado-se muito jovens ainda, teriam errado nisso ou teriam errado no percurso da vida até atingir a rotina?
De vez em quando, ela pegava o álbum de fotos e revia tempos passados tão gostosos dos primeiros anos de casamento, queria que estes tempos voltassem, eles eram jovens, os filhos eram apenas bebês aprendendo sobre o mundo, tão graciosos! Ela sabia que os dois ainda eram jovens mas o espírito estava tão acomodado e, apesar dela manter-se com o mesmo peso, ele tinha engordado pelo menos uns vinte quilos, não que estivesse feio, mas tinha perdido muito daquele charme e muito mais da atração física que possuiu.
Pelo menos um pouco mais de interesse ela tinha no trabalho de assistente social. Ajudando nas favelas, cadastrando moradores para o programa de renda mínima, e tendo este contato direto com aquelas pessoas tão necessitadas é que sentia-se extremamente útil à sociedade, fazia-se de assistente social, agente de empregos, agente de saúde, advogada, psicóloga. De tudo um pouco para ajudar tanta gente que tinha somente um barraco e um pouco de dignidade, sabia como a vida era dura para eles e como era fácil para ela. O seu salário não era muito alto, mas se virava bem com ele sem ter que apelar ao marido para as suas necessidades.
E foi através do trabalho que ela conheceu o Reinaldo. Ela fazia um trocadilho com ele por causa do homossexualismo assumido, chamando-o de Gueinaldo. Com o tempo, ele se tornou amigo e confidente dela, em todos os assuntos, principalmente no relacionamento conjugal. Reinaldo, muito sensível, percebia o descontentamento dela com o marido e ouvia, pacientemente, as reclamações, dando-lhe força e conselhos sobre as mazelas cotidianas, desde dar um gosto melhor na janta até sobre como enlouquecer um homem na cama, assunto que ela ouvia muito interessada, divertindo-se com as aventuras homossexuais do amigo. Além de tudo, Reinaldo tinha grande conhecimento artístico, político e social. Eliana sentia-se muito bem com ele e brincava que, se ele fosse homem, ela trairia o marido por uma noite de prazer com ele, Reinaldo fazia pouco caso e dizia que nunca queria dormir para acordar com uma mulher na cama, pois ele tinha horror só de pensar em transar com uma. Eliana pensava nos motivos que levavam um homem a ser homossexual, mas o Reinaldo não lhe dava nenhuma pista e não falava sobre isto. Ele brincava muito nesta hora mas nunca falava dos seus problemas.
Quando ela falava para o Dirceu sobre o Reinaldo, o marido nem dava bola e ainda dizia que não gostaria que um gay entrasse em sua casa. Apesar dela alegar que ele era uma pessoa comum, o marido, preconceituoso, não queria saber de nada.
Mas um dia Eliana sentiu de verdade que a beleza do Reinaldo ultrapassava as fronteiras psicológicas que ela admirava. Convidada, numa tarde, para assistir ao ensaio de dança contemporânea no grupo em que o amigo participava, não pôde conter a admiração por ele. Pela primeira vez o via de dorso nu, observando a perfeição dos músculos peitorais e do abdômen, Reinaldo tinha um tipo físico atlético, magro, mas musculoso, mulato claro de traços mais suaves, que a fez suspirar naquela tarde “Ah! Se ele fosse homem...”, ela pensava.
 O grupo de dança do Reinaldo era formado por seis pessoas, três homens e três mulheres, como já havia feito balé na infância e adolescência, Eliana gostava muito de dança e começou a ir uma vez por semana aos ensaios do grupo, fazendo amizade com os bailarinos, descobrindo que o único homossexual ali era mesmo o Reinaldo, os outros dois eram casados, com filhos e as moças eram solteiras, ela gostava muito daquele grupo, que tinha uma cabeça mais arejada para idéias novas e para as amizades. Além disso, ela acabou por gostar de vê-los dançar, dar palpites e participar de alguns exercícios, ganhando um pouco mais de resistência e de forma física. Com o tempo, percebeu o quanto gostava do Reinaldo, afeiçoando-se muito a ele numa amizade de laços fortes que tornou a vida dela mais alegre. Presente nos ensaios, sentia-se viva e feliz naquelas poucas horas em que se esquecia da monotonia da vida caseira. Às vezes, levava a filha, Ana Clara, que passou a gostar muito de dança também e a comentar com a mãe, dentro de casa, das pessoas e do assunto. Dirceu ouvia às vezes e ficava um pouco ensimesmado com aquelas conversas mas não dava muita importância ao assunto.
E um novo bailarino entrou para o grupo e era um homem bastante bonito que chamou a atenção de Eliana, mas as convicções dela não sofriam crises de identidade ou de sexualidade e ela sabia muito bem o seu espaço. Apenas comentou uma vez com o Reinaldo que achava o Cléber bem bonito e o amigo, lógico, concordou reclamando: “É bonito, pena que é hetero convicto também”. Ela riu da forma como o amigo falou aquilo. A filha falou sobre ele em casa e, pegando o comentário no ar, Dirceu quis saber quem era o Cléber e demonstrou algum ciúme, interessando-se um pouco por estas atividades que Eliana estava desenvolvendo.
Dirceu trabalhava quando se lembrou do envelope que a Suzana lhe dera, procurou-o dentro da sua pasta e não o encontrou. Aproveitou a hora do almoço para procurá-lo no carro e, não o encontrando, preocupou-se. Temia que o tivesse deixado em casa e que alguém pudesse abri-lo. Sem saber o que continha, pensava nas conseqüências caso a sua mulher o encontrasse, qualquer palavra poderia denunciá-lo e abrir uma séria crise no seu casamento, ele achava que tudo o que estivesse dentro dele era uma prova irrefutável do assédio de Suzana, como ele poderia explicar esta situação à sua esposa? Ela nunca acreditaria na verdade e, novamente, ele se imaginou na rua da amargura, vivendo longe dos filhos, como um rei que perdia o trono e vivia exilado do seu país. Para Dirceu, sua vida era seu trabalho e sua família e, ao mesmo tempo, era o desejo pela Suzana. Memorizou o envelope, pesquisando na mente a última vez que o vira, ou onde o deixara, lembrou-se de levá-lo para a casa e de que ele não o guardara na pasta, mas o carregara debaixo do braço, certamente que o deixara na sala, junto com a pasta e, de manhã, saíra apenas com a pasta.
Como não via a Suzana desde manhã, Dirceu a procurou discretamente pela sua seção, indo perguntar ao Edgar sobre ela, rindo, como se soubesse de alguma coisa, seu colega lhe disse que ela só viria à tarde pois o chefe a mandara recepcionar os norte americanos da matriz que estavam em visita à fábrica e haviam chegado no dia anterior.
De fato, após o almoço, os norte americanos passaram por aquela seção da fábrica acompanhados pela Suzana, pelo chefe e pelo supervisor. Ela estava mais produzida do que nunca e extremamente linda, ao passar por Dirceu, sorriu para ele, piscando com o olho esquerdo, depois continuou conversando com os norte americanos e acompanhando a visita. Certamente que o chefe a escolhera para secretariar a reunião não exclusivamente pela sua qualidade no trabalho mas principalmente pela sua qualidade visual.
Confuso e excitado porque aquele jogo começava a ficar interessante, Dirceu, apesar de sentir-se culpado, sentia-se também lisonjeado e sortudo, voltava-se a se achar um homem que despertava interesse nas mulheres e todos aqueles acontecimentos eram uma massagem e tanto no seu ego e ele passava a sentir-se um homem melhor que os demais, aflorando uma vaidade escondida nos recônditos de sua personalidade, se ele podia atrair uma mulher tão formosa quanto aquela, considerava-se acima da média dos homens, como se aquele instinto animal e primitivo lhe desse o direito de ser o macho dominante do grupo de macacos e, por isso, ter as mulheres que julgasse necessário ter.
No fim da tarde, em sua casa, ao colocar a sua pasta na estante da sala após o trabalho, deparou-se com o envelope branco colocado junto com as cartas na estante, deu graças a Deus por encontrá-lo mesmos sabendo que aquele poderia o caminho do pecado mas não o abriu imediatamente, temendo que alguém da casa o visse e quisesse saber do que se tratava. Colocou-o dentro da pasta e fez a sua rotina de sempre. Apesar da curiosidade, abriu aquele envelope somente no dia seguinte, dentro do carro, quando estava parado no posto para abastecer. Apenas olhou o conteúdo sem retirá-lo e viu que eram as fotos em que a Suzana aparecia nua e ficou excitado. No verso de uma das fotos estava escrito “Estou esperando você”. Dirceu viajou por um instante em sonhos eróticos, sendo acordado pelo frentista que lhe entregava as chaves:
_ Quer trocar o óleo, doutor?
_ Não, não. Obrigado!
Enquanto dirigia até o trabalho, perguntava sobre as possibilidades de transar com a Suzana, fazia planos, pensava nos melhores horários, qual o dia seria melhor, inventaria que iria fazer umas horas extras ou seria melhor faltar uma tarde ao trabalho? Qual seria a melhor desculpa era o ponto crucial numa eventual traição.
Até que começou a pensar em outras coisas que se envolviam àquela situação. Precisaria usar camisinha por causa das doenças sexualmente transmissíveis, mas ele se preocupava mesmo era com a aids, porque o seu colega Edgar sempre dizia: “Cuidaids, cuidaids com isso, cuidaids”. Ele tinha certeza de que o Edgar pensava que ele tinha transado com a Suzana, pelos comentários e modos de olhar, mas ele sempre negou qualquer envolvimento.
O único problema para Dirceu continuava sendo a sua consciência. Ele não parava de pensar que a traição era um erro, era a morte da sua vida em família e isto o freava e o trazia ao chão, mas um pensamento bateu em sua mente e devastou uma floresta inteira porque era algo novo e ele não tinha se dado conta de que tudo isto poderia acontecer com a Eliana, ou até já ter acontecido. E se ela tivesse um amante? E se aquele riso do Edgar não fosse por causa do assédio da Suzana mas por causa dos chifres que lhe colocavam na cabeça? O Edgar poderia saber de mais coisas do que ele imaginava, afinal, a esposa dele, a Marinês era muito amiga da Eliana, pelo menos nos churrascos, elas conversavam muito. Ela teria razões para ter um amante? Teria, respondeu a si mesmo. Ele não lhe dava muita atenção, tinha engordado, fazia muitas horas extras. Imediatamente, lembrou-se do amigo gay de quem ela lhe falava muito, não poderia ser apesar dele sentir que ela o admirava, mas poderia ser aquele outro bailarino, o Cléber, será que ela poderia ter algum caso com ele? Esta história dela não se interessar tanto por sexo, será que era por quê ela tinha um amante? Não poderia acreditar nisto mas tinha uma dúvida. Como poderia ter certeza? Se ela tivesse um amante, o que fazer? Pensou em vingar-se, em perdoar, em trair também. Se ela tivesse um amante, as portas estariam abertas para a traição porque não teria sido ele a quebrar o juramento do casamento, mas ela. E ele poderia ficar com quem quisesse!
            Mas que coisa mais idiota! Pensou. Ele havia jurado, havia emocionado-se e se lembrou de que deveria perdoar, claro, se ela o traísse, ele não poderia pagar na mesma moeda, o certo era perdoá-la, aceitar o erro, cumprir a sua promessa. E, por esta mesma via, ele entendia que ela também teria a obrigação de perdoá-lo se ele errasse. E ele ainda estava carregando na pasta as fotos da outra nua e no corpo o desejo do sexo, ficava, assim, arrumando milhões de subterfúgios que lhe permitissem descumprir a sua palavra.
            Para seu azar, ou seria sorte? Suzana ficou quinze dias afastada de suas funções normais para acompanhar os americanos que visitavam o país, foi o tempo suficiente para que ele mudasse alguns hábitos. Matriculou-se numa academia de ginástica para perder aquela barriga incômoda e para entrar em forma, talvez imaginando que, se um dia fosse transar com a Suzana, deveria, pelo menos, estar bem fisicamente. E o ego alimentado pelo assédio dela, fazia-o esforçar-se ainda mais nos exercícios. Queria ficar mais bonito e mais forte para justificar ao mundo que não era o bom por acaso, típico comportamento machista, sem contar que temia que a esposa tivesse um amante e queria estar preparado, inconscientemente, para dizer algo do tipo: ”como ela poderia trocar-me por aquele traste?”, fosse lá quem fosse o amante imaginário.
            Eliana percebeu todas estas mudanças no marido e começou a gostar, até incentivou-o porque ela queria mesmo que ele se produzisse mais, ficasse mais bonito e mais em forma, isto lhe dava um certo prazer, até mesmo para que as amigas morressem de inveja dela quando o apresentasse. O amor que tinha e o prazer de vê-lo melhor não podiam fazê-la entender o que se passava com o marido, até que o Reinaldo, ao ouvir o que ela lhe dizia, vaticinou:
            _ Desculpe, minha amiga, mas isso aí é amante!
            Amante! Amante! Amante! A palavra reverberou nos recônditos do cérebro por alguns dias, derrubando-a em uma certa depressão. Faltou-lhe forças para enfrentá-la e ela estava lá, em todos os dias e em algumas tardes em que, sozinha, ela começava a chorar na cama. A possibilidade remota de ser verdade o que o Reinaldo lhe dissera fez com que Eliana se sentisse sem chão. O marido estava diferente e lhe disseram que era uma amante.
            _ Onde foi que eu errei? Sempre fui uma boa esposa, cuidei dele e dos meus filhos com tanto carinho... se ele tem uma amante é porque eu falhei...
            Eliana sentia-se culpada por seu casamento estar naquele pé, sim, porque em algum momento ela errou e permitiu que outra mulher entrasse na vida dele. Talvez ela não estivesse mais tão bonita e atraente quanto fora, ou era falta de sexo, talvez o marido não a achasse tão boa na cama. A sensação de culpa que a invadia não lhe dava chance de reagir contra esta ameaça, mas ela precisava saber quem era esta mulher. Pensou que deveria ser uma mulher muito bonita e que ele não chegaria aos pés da outra, por outro lado, não queria dar-se por vencida e desejava conquistar o marido novamente, tinha que tentar.
            Dirceu percebeu que sua esposa ficara muito mais carinhosa por aqueles dias e que desejava mais tempo na cama, só os dois. Seu ego cresceu junto com a culpa, mesmo que ainda não ocorresse nada com a Suzana, aquele beijo ainda estalava na sua boca e ele sentia-se preso a uma situação complicada. Gostava da esposa, mas queria saber como era a outra na cama, sem saber o porquê disso. Seria apenas um tesão, seria pressão da sociedade, dos amigos, ou era o assédio direto e incisivo dela que o compelia a responder? Ginástica, regime e roupa nova. A mulher oficial e a reserva, a família e a solidão. O mundo tão estranho e movediço em que ele se plantava e tudo não era mais aquele lugar seguro em que morava há apenas uma ano. Vivia agora cercado de dúvida, de culpa, de desejo e de vaidade porque as duas mulheres o queriam e ele sentia que a sua esposa estava tão diferente e mais amável, que começou a desconfiar mesmo da possibilidade dela estar traindo-o.
            Ele estava pisando em frágeis pilastras que se agitavam ao sabor dos tremores, e acabou encontrando uma certa estabilidade naquela nova situação, sem que pudesse saber quanto tempo ela duraria. De um lado, a sua mulher interessada, e de outro, a Suzana, que continuava insinuando-se, fazendo um jogo em que ele se fazia de difícil, criando mais dificuldades, e isto parecia incentivá-la a continuar o assédio. Usando de alguns recursos tentadores para provocá-lo, dando-lhe a entender que estava excitada, mas, por enquanto, o jogo ficava no empate técnico de zero a zero.
            _ Mas você está fazendo tudo errado, menina!
            Explodiu o Reinaldo quando Eliana lhe contou o que se passava e o que ela estava fazendo para reconquistá-lo.
            _ Você é uma mulher tão bonita e tão sensível, não pode colocar-se assim, como se fosse vítima da situação e muito menos como se fosse a culpada por perder o marido, ele é que tinha que ficar preocupado em perder uma mulher tão maravilhosa assim, além de tudo, em forma, enxutíssima!
            Eliana se envergonhava de ouvir isto do Reinaldo, ela não sentia tão bonita e nem tão capaz de conquistar outro homem, aliás, ela não queria outro homem, queria apenas continuar a sua vida com a sua família e viver o amor que sentia por ele e pelos filhos. Se possível, queria apenas que ele fosse mais carinhoso. Talvez se ele tivesse mais carinho, talvez se ele lhe desse mais prazer na sua vida sexual, pois seu marido era mais interessado na relação sexual em si e não no clima de namoro, com tempo mais demorado. Por mais que ela lhe falasse da importância do clima antes do sexo e do carinho depois, ele parecia não ligar muito. O importante para ele era transar e pronto. Pouco carinho, pouca emoção, pouco romance, o que tornava monótono o prazer dela, porque o prazer maior era sempre dele e fazia tempo que ela não sentia um verdadeiro orgasmo, se é que se lembrava da última vez que sentira.
            Seria possível que, por sentir-se assim, ela era a culpada pelo marido procurar outra? Começava a pensar no que o Reinaldo lhe dissera e entendia, enfim, que o relacionamento estava em crise porque o marido se fechava num mundo só dele, não dava espaço para ninguém entrar e não dava chance a si mesmo de ser diferente.
            Pensou no que fazia os homens acharem que são os únicos e que podem resolver tudo sozinho, sem qualquer ajuda. Se ele não se sentia satisfeito com o casamento, por quê não lhe falava? Por quê não se abria e tentavam resolver quaisquer questões juntos? Os homens são muito complicados e vivem num mundo só deles, não saíram do tempo das cavernas e precisam ficar o tempo todo provando que podem mais, para quê? Insistem numa luta particular, eles contra o mundo, coisa mais ridícula. E a mulher é só uma parte da vida deles, mas, para ela, o seu marido era a vida dela, por ele e pelos filhos que ela se dedicava, abdicando de alguns de seus sonhos e vontades e lhe dando o suporte moral e familiar necessários para que ele crescesse e, em troca, desse-lhe o suporte financeiro para que os filhos pudessem ter um lugar na sociedade. Ela entendia que a família era um sistema de trocas mútuas em que todos davam o que podiam, dedicavam-se para que os frutos desta doação fossem colhidos por todos, não havia ninguém mais importante, cada um numa função diferenciada e, para ela, o único cimento que mantinha tudo ligado era o amor, acompanhado do carinho com que se fazia as coisas.
            Mas o marido parecia colocar o sexo no lugar do amor e confundir coisas tão distintas. Ela compreendia que ele não entendia o amor da mesma maneira que ela, e o Reinaldo estava certo, em vez de agradá-lo, ela deveria colocá-lo contra a parede, espremê-lo, apertá-lo e mostrar-lhe que a vida dele não pertence somente a ele, mas a ela e aos filhos e que, se ele tem alguma intenção de fazer alguma coisa errada, estará destruindo a si próprio, a ela, aos filhos. E mais, se há diferenças, têm que ser resolvidas em função das promessas que fizeram no altar perante Deus, quando se casaram por livre e expontânea vontade. Ela ia tomar uma atitude para resolver de vez todas as dúvidas e salvar o seu casamento, ou destruí-lo de vez, temia. Prepararia uma estratégia, uma conversa, uma forma de pressioná-lo e resolver tudo. Até queria acreditar que não houvesse amante alguma e queria ouvir isso da boca do marido para que ele não tivesse como mentir ao olhar nos olhos dela.
            À noite, Eliana não foi dormir no mesmo horário que o Dirceu. Ela zanzava pela casa pensando na sua vida e numa forma de recuperar tudo aquilo que estava tão distante no seu coração. Na sala, encontrou alguns antigos álbuns de fotografia e os reviu, num misto de nostalgia, saudade e tristeza. Ela sabia que queria recuperar um tempo que não voltaria mais, um tempo de sonhos e de romance, de vida e de futuro, com portas abertas para o mundo e de desejos e esperança, pensando que a felicidade estava nos sonhos, e as pessoas nunca são felizes para sempre, têm que conquistar a felicidade passo a passo, porquê tem que ser assim tão difícil ser feliz? Eram fotos de um tempo em que ela foi feliz, era um tempo passado, tão duro, tão ruim de se viver, tão cheio de privações, mas foi um tempo feliz, não tinha dúvida, porque foi um tempo cheio de sonho e de esperança, que culminou no que os dois desejavam, a família, a casa própria, a casa na praia, viagens, conseguiam fazer, hoje, tudo o que sonhavam no passado, mas hoje eles não eram felizes. Só agora ela reconhecia que aquela vida simples era melhor do que hoje, em que vivia com tudo isso e mais, rodeada de todos os aparelhos modernos, vídeo cassete, televisão, telefone celular, computador, internet, de que adiantava ter tanta coisa se não tinha a felicidade de poder sonhar junto com a pessoa que ela amava, junto com o homem a quem dedicava a sua vida.
            Ali, naquele momento, na penumbra da sala que ela pôde constatar a perda do sentido da vida em conjunto com alguém que não a tinha mais no coração, e a tristeza de toda a vida tomou conta dela pois era impossível acreditar que a sua paixão não servira para ser feliz. Era difícil aceitar que aqueles doze anos juntos teriam um desfecho triste e sem sentido, que ela chegaria naquele ponto sem conhecer o próprio marido por dentro e sem compreender porque não eram mais um casal feliz, procurando em cada dia do passado aquela primeira vez em que eles se desviaram no caminho da felicidade, obviamente, ela não encontrou aquele momento em que tudo seria diferente se, em vez de uma decisão, outra fosse tomada.
Foi deprimida por estes pensamentos que ela percorreu toda a sala em passos suaves para que ninguém a ouvisse, olhando todas as coisas, até que encontrou a pasta do Dirceu no lugar de sempre e resolveu abri-la, como se procurasse encontrar alguma coisa que confirmasse tudo o que sentia, e, apesar de que aquela pasta nunca fora sagrada, era como se estivesse mexendo no segredo mais íntimo do seu marido, pois era o único lugar da casa que ela nunca percorria no dia a dia.
Olhou os papéis lá dentro, um por um, tentando encontrar algo que ela não sabia o que era, talvez uma carta ou um telefone suspeito que indicasse a existência de uma amante, que o Reinaldo lhe falara com tanta convicção. Encontrou um envelope branco de carta e o abriu. Dentro as fotos da Suzana nua, era a prova da verdade, ela quase desfaleceu e o mundo lhe caíra definitivamente. Ela sabia quem era aquela mulher pois a conhecia dos churrascos do pessoal da fábrica. Suzana, que era realmente linda! Sentiu-se inferiorizada mas não se sentiu impotente. De algum lugar do fundo da sua alma ainda restava uma vontade de lutar, de viver, de reconstruir sua vida, pois agora ela identificava a sua inimiga, revigorando-se. No fundo, a inimiga talvez não fosse a Suzana, pois o verdadeiro inimigo era egoísmo que tomou conta da vida de cada um, a falta de devoção, a rotina que engoliu o amor e o lançou no meio do limbo da eterna falta de tempo da suposta correria do mundo moderno. Ela precisava entender o erro, e também mostrá-lo ao Dirceu para recuperar a vida anterior.
Eliana conseguiu ponderar a situação e ainda queria ouvir oficialmente do marido que existia esta outra mulher, queria que ele dissesse alguma coisa sobre tudo, queria dar-lhe uma chance explicar o inexplicável, fotos de outra mulher nua na sua pasta, se ainda fossem de uma revista masculina, seria perdoado, mas de uma colega de trabalho! Ela começava a entender melhor o desenrolar do seu casamento e não podia por doze anos mais três de namoro pela porta da rua, apesar de ter vontade de fazê-lo. Ela entendeu que o erro de ambos foi um esquecer do outro e o dela de acreditar que o marido era um super homem, que tudo poderia resolver, esquecendo que o fardo da responsabilidade masculina era tão pesado quanto o da feminina, apesar de serem diferentes, mas, ao enxergar o próprio erro, via que era o mesmo do marido, pois, simplesmente, um esquecera que o outro era um ser humano passível de sentimentos difusos e confusos, de inseguranças, necessitado de carinho, amor e sexo, além de compreensão e de cumplicidade. Mas do que tudo, ambos necessitavam de mais sonhos do que a dureza que a realidade lhes impunha, de mais vida e de mais arte do que o dinheiro. Eles não puderam compreender-se nestes anos porque foram encerrando-se em seus papéis sociais de pai, e mãe, marido e mulher, esquecendo-se das funções primordiais de amantes um do outro e, ao acontecer isto, o casamento fora tratado como uma função social, não como uma integração do casal, ela agora compreendia que o casamento não se sustentaria apenas pelo fato dele existir, mas somente continuaria se ambos se esforçassem.
Ela não sabia como iria falar com o Dirceu sobre tudo aquilo e foi deitar-se bem tarde naquela noite. Ao ver o marido dormindo, pensou em como ele se parecia com uma criança e não sabia se lhe fazia carícias ou sevícias, pois a raiva pela suposta traição a ensandecia mas o perdão que existia na alma a acalmava, passando boa parte da noite acordada e adormecendo de puro cansaço. O dia seguinte se reservaria longo demais.
No dia seguinte, durante a manhã na fábrica, Dirceu percebia que o jogo com a Suzana poderia desempatar a qualquer momento, tanto porque ela, agora que os norte americanos já haviam ido embora, podia dedicar-se ao seu esporte predileto, enlouquecê-lo de tesão, assim como a todos os homens da fábrica, com mais vontade, quanto porque ela viera com um vestido mais sensual do que nunca, que nada mostrava e muito insinuava, tendo começado o dia jogando aquele charme para cima dele, sendo que o Edgar não perdeu aquele lance e comentou na surdina com o Dirceu:
_ Vai que é sua, Dirceu! Ela já está toda molhadinha só de passar ao seu lado! Olha, que mulher igual a ela acaba enjoando desta brincadeira e passando para outra freguesia, se você a dispensar, eu estou na fila e vou achar que você não é muito chegado...
_ Que isso, Edgar, sou casado e tenho dois filhos!
_ Mas só tem um pau, cara! Cavalo amarrado também pasta e certidão de casamento não é atestado de óbito, todos os machos da fábrica estão babando por ela, e você está esnobando! Mulherão assim é uma vez só na vida!
Dirceu não queria que acontecesse mas o Edgar acentuou tanto a palavra “machos” que dava a entender que ele, Dirceu, fosse menos homem que os outros porque não queria transar com a Suzana, aquela conversa insistente do Edgar mexia com os seus brios, ainda mais naquele dia, em que ela estava exageradamente linda, estando difícil para todos trabalhar, sendo que ele, apenas suportava o tempo passar, evitando-a de todas as maneiras, até que chegou a hora do almoço e ela entrou na sua sala.
Suzana entrou em sua sala provocante e linda como sempre. Àquela altura, sua culpa e seu desejo ainda brigavam entre si pela vitória, mas ela entrou de tal forma que mudou o destino desta luta. Ela fechou a porta da sala e passou a chave, pois, apesar de ser a hora do almoço, ela não queria ser interrompida. Ele ficou paralisado com a atitude da mulher formosa e não reagiu.
_ Oi, Dirceu, tudo bem?
_ Tudo bem, Suzana.
Eles ficaram sozinhos e uma conversa meio sem nexo sobre uma massagem nas costas surgiu e ela foi chegando perto indo para atrás da cadeira dele, perguntava-lhe se ele estava sentindo-se bem com a massagem, depois, começou a beijar-lhe o pescoço na mesma hora em que começou a passar as mãos no peito dele, que tentava resistir, mas o desejo o fazia ceder, ela beijou o seu rosto e, ainda por trás dele, beijou-lhe a boca. Àquela altura, ele não conseguiu mais resistir e cedeu ao seu desejo, a razão perdia o jogo, a culpa fora atirada para fora do campo com a certeza de que, ao retornar, desforraria em dobro na consciência. Ela tocou no pênis dele com a mão esquerda, enquanto, com a direita, dirigia a mão dele para os seios dela que se mostravam com duas frutas maduras de mamilos rosados a escapar das suas vestes. Não havia mais nada naquele instante, nem razão, nem culpa, nem passado, nem futuro, apenas o desejo, somente o clamor do sexo que invadia corpo e espírito, e o fato só precisava de mais alguns instante para ser consumado.
O telefone começou a tocar insistentemente trazendo-o de volta à realidade, ao local onde estava, à consciência.
_ Espere um pouco, deixa eu atender o telefone!
_ Esqueça o telefone!
Espere só um pouco... ele esticou o braço e pegou o aparelho, era Eliana! Ela lhe perguntou se ele já havia almoçado e ele disse que sim, depois, ela lhe pediu que fosse para casa com urgência.
_ O que aconteceu? Alguma coisa grave?
_ Sim, Dirceu!
E ela começou a chorar no telefone, enquanto a Suzana continuava acariciando o seu marido sem que ela pudesse imaginar o que acontecia e enquanto ele tentava fazer com que sua voz e seu comportamento fossem normais ao telefone.
_ Queria que você viesse logo, só posso lhe falar pessoalmente, é importante!
_ Mas está tão difícil para eu sair agora! Não pode ser mais tarde?
_ Não, tem que ser agora, é caso de vida ou morte!
Ao falar assim, não teve jeito. Diante da situação, ele se afastou e ficou em pé, arrumou a camisa, a gravata, a calça, desalinhados pela ação da Suzana, inventou uma desculpa e saiu, sem avisar ninguém na fábrica, pedindo que a Suzana avisasse o chefe. Não fora consumada ainda a traição física completa, mas ele caíra perante a tentação, que vencera por um momento dentro da sua cabeça. Quase se completara o ato, faltou pouco e, ironicamente, quem o tirara da consumação fora a sua mulher, e a culpa começou a cobrar mais do que em dobro a sua consciência, que ele temeu não ter coragem sequer de olhar nos olhos da sua mulher quando a encontrasse, mesmo que ela nada soubesse e, se possível, nunca saberia, mas, mesmo não querendo que a Suzana abusasse dele desta forma, ele sabia que não conseguiria mais resistir. E o que poderia ter acontecido que a Eliana lhe telefonasse e pedisse tanta urgência? Na cabeça dele, só poderia ter acontecido algo com as crianças, alguém sofrera um acidente. Poderia ser alguma coisa com outro parente.
Ele entrou assustado em casa e colocou a sua pasta ao lado da estante no mesmo lugar de sempre. Chegou sem armadura e sem escudo de proteção, enquanto ela já estava armada dos pés à cabeça com pedras, cassetetes, metralhadora giratória e um AK-47 russo, montada em cima de um tanque de guerra para passar por cima dele e destruí-lo, mas, antes disso, poderia dar-lhe o perdão se ele tivesse uma história convincente para aquelas fotos.
_ O que aconteceu, Eliana? É alguma coisa grave?
_ É muito grave!
Ela apenas foi até a pasta dele e retirou o envelope com as fotos dela nua.
_ Explique isto!
Mas não havia explicação. Como era possível contar a história das fotos sem revelar o que ele havia visto e feito? O beijo, a nudez, o assédio e a quase traição física que ocorrera alguns minutos antes? Eliana nunca acreditaria que era Suzana quem o assediava, ainda assim, tentou evitar uma desculpa.
_ Estas fotos são uma montagem fotográfica que o pessoal do escritório fez no computador, sabe como é, uma brincadeira...
_ Um brincadeira onde está escrito “estou esperando você”? Seu mentiroso!
Não era possível mais inventar.
_ A Suzana me deu estas fotos, foi a Telma que as tirou, não sei porquê ela me deu.
E era tudo verdade!
_ Mas foi só isso! Eu nunca quis nada com ela, somos somente colegas de trabalho!
E era tudo mentira.
_ Nada! Como não aconteceu nada? Quer dizer que estas fotos não querem dizer nada? Que mulher é esta que dá fotos dela mesma nua para um homem? E aquele dia que você fez hora extra? Eu tinha ligado para a portaria e me falaram que você tinha saído às sete horas e chegou aqui às nove e foi direto para a cama! Pode me explicar isto!
Dirceu não tinha muito o que falar.
_ Eu levei a Suzana para a casa, foi neste dia que ela me deu as fotos, mas eu nunca quis nada com ela, eu não te traí. Eu te amo, Eliana!
_ Não me venha com esta conversa! Se me amasse não andaria por aí com estas fotos, não dava carona para esta vagabunda. Me dá nojo só de pensar que você pode ter se deitado com ela e depois comigo! Depois me vem com história de ginástica, de perfume, era tudo por causa dela!
O mundo do Dirceu estava vindo abaixo, aquelas frágeis pilastras estavam caindo num abismo colossal e qualquer coisa que ele dissesse poderia piorar a situação, ele esperava que ela se acalmasse para contar toda a sua versão dos fatos, mas ela estava armada e não lhe dava chance de tentar explicar. Ela começou a falar tudo o que sentia e a colocar para fora anos e anos de pequenos ressentimentos que foram acumulando-se, era o cansaço e a chateação daqueles fins de semana intermináveis, da televisão de todo dia, da falta de romance, de dizer que tal prato não estava gostoso, sendo que ele nem sabia cozinhar, da falta de apreço pela arte dela, falava de tantas coisas grandes e pequenas que envolvem todo casamento.
Ele apenas repetia que não a traíra, como se a mentira falada mil vezes pudesse tornar-se uma verdade, dizia que ela estava sendo injusta com ele e que ela mesma devia ligar para a Suzana e saber o que aconteceu de verdade! Mas o abismo era profundo e não havia onde segurar-se, a queda era muito rápida.
_ Tanto que nós lutamos pelo nosso casamento e você joga tudo fora por causa de uma vagabunda, tanto que eu me sacrifiquei por você e por nossos filhos! E você joga pelo ralo a vida inteira!
_ Não é assim! Eu não quero jogar nada pelo ralo, eu quero os nossos filhos, nosso casamento, me perdoa, por favor, me perdoa, se eu errei, me perdoa!
_ É difícil perdoar, Dirceu, dói demais no meu coração.
Ela não estava em condições de perdoar ou de acreditar. As provas eram muito claras e óbvias: uma mancha de batom no colarinho e o cheiro do perfume o incriminaram de vez naquela hora.
_ E esta mancha de batom, e este perfume? Você estava com ela agora há pouco! Seu canalha! Saia daqui, vá embora, por favor, vá embora, não posso vê-lo mais! Saia daqui!
Não havia mesmo o que fazer e ele saiu ainda que não soubesse para onde ir, deixando-a no seu choro inconsolável. Ligaria mais tarde, voltaria à noite quando ela estivesse mais calma, iria para um hotel, não sabia.
Eliana chorou ainda por um bom tempo mas chegava a hora de ir buscar os filhos, ela se recompôs e se esforçou para retomar a atividade cotidiana, lavou o rosto e se pintou para disfarçar a tristeza, saindo para buscá-los.
Dirceu vagou com o carro pela cidade até estacionar na avenida do pôr-do-sol e sair para olhar a paisagem do banhado, sentou-se na beira do gramado e ficou olhando as montanhas ao longe, os prédios na beira da avenida e o movimento dos carros. Ele não queria perder a Eliana e a família, preferia mil vezes ser esquartejado que saber que falhara com todos e, principalmente, consigo mesmo porque quebrara a promessa que fizera a si e a Deus. Como encarar Eliana e os filhos? Como queria ser um exemplo se falhara tanto? Os pensamentos iam e vinham como uma maré em noite de lua cheia enquanto ele caminhava pelas redondezas lembrando-se do tempo de adolescente em que a galera se reunia naquela avenida nos domingos de sol para a paquera que corria solta. Parecia sentir o alvoroço dos adolescentes, os meninos com os carros dos pais, outros fazendo malabarismos com suas motos, e as meninas passando, olhando, voltando, olhando de novo, ouvia o som alto dos carros, as conversas que nunca acabavam. Foi ali que ele encontrou a Eliana por diversas vezes naqueles domingos inocentes, em que circulavam a pé, sempre atentos às paqueras da ocasião, num flerte gostoso e inconseqüente e ingênuo, velhos tempos passados, e como foram alegres. Tudo se foi e ele curtiu tanto este tempo quanto ele foi rápido, depois passou no vestibular e foi cursar engenharia em São Paulo.
Caminhando por ali, ele chegou na capela de Nossa Senhora de Fátima, onde se casou. Todos os lugares lhe traziam alguma lembrança da Eliana. Sentou-se num banco do fundo da capela e rezou para que Deus o ajudasse. Olhava para aquele altar sem qualquer enfeite e tentava lembrar-se do dia do seu casamento. Flores no altar, padrinhos, convidados, fotógrafos e um cinegrafista, quantas coisas se agregaram para se realizar o ritual do casamento. Foi num fim de tarde de um sábado em pleno feriado de sete de setembro, estava meio frio, e a viu entrando na capela, linda, mais linda do que qualquer outra noiva que já vira, por quê todas as noivas tornavam-se lindas no dia do casamento? Tornam-se seres resplandecentes de beleza inatingível, irradiam um alegria fantástica que as transformam nas princesas sonhadas.
Talvez faltava-lhe enxergá-la novamente como se fosse aquela noiva, irradiando felicidade, esperança e sonhos, quantos sonhos existem no casamento que ele procurava o dele naquele momento. O que ele sonhava no dia em que se casava? Ser feliz como todo mundo sonha e até que não foi difícil, por alguns anos, sentiu-se feliz. Agora sentia-se infeliz, depois que a Suzana começou a trabalhar na fábrica, trazendo-lhe de volta o desejo e o tentando, provando-o. Talvez Deus quisesse escrever por linhas tortas e ele ainda enxergaria de qual maneira inusitada iria resolver a sua vida com a Eliana. Ele ainda queria corrigir o erro e retomar a mesma vida de sempre.
E ali na capela, um desejo súbito de confessar-se lhe veio, era um pecador e fazia muito tempo que não confessava os seus pecados, estava arrependido pela traição e foi até a Catedral de São Dimas, há uns dois quilômetros da capela de Nossa Senhora. Não havia padre naquele horário conforme informou a secretária, mas ele entrou na igreja e sentou-se no banco, rezando pela segunda vez, numa conversa particular com Deus, desejando aliviar a sua consciência e ganhar o perdão com o arrependimento.
Lembrou-se dos tempos de menino e adolescente. Do pai sempre sisudo e de poucas palavras que, às vezes, saía de casa e só voltava no dia seguinte, sem falar com ninguém, sua mãe não tocava no assunto. Do futebol que o pai dizia ir aos domingos e nunca o levava num relacionamento sem afeto com os filhos. Depois de muito tempo, somente no enterro do pai, entendeu o que acontecia na infância quando conheceu seus meio irmãos que também choravam ao lado do caixão. Sem contar que, a partir da morte do pai, a mão começou a contar tudo o que sofrera ao lado daquele homem. Prometeu que, se um dia se casasse, faria tudo diferente e até conseguira, só que foi tomando um caminho semelhante e agora se arrependia.
Martirizava-se por ter sido tão fraco. Fazer diferente seria não ter amante, não trair, conversar tudo, esclarecer tudo, gostar dos filhos. Mas entendia que lhe faltava a emoção de estar junto de verdade, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, inclusive nas doenças do espírito humano. Tinha que ter partilhado com a Eliana as suas vontades, desejos e dúvidas com mais profundidade. Ele fora superficial, construindo um casamento de aparências, não compreendera o que era o amor de verdade porque nunca soubera que o verdadeiro amor era doar-se, porque, mesmo não deixando a família de lado, curtindo os filhos nos fins de semana, deixou o ritmo do trabalho ditar as regras e, junto com as horas extras, vinha mais dinheiro e, com o dinheiro, mais consumo e acumulação, de tal forma que ele trabalhava não apenas para sustentar a família mas para ter, também, um certo padrão de vida acima um pouco da média, sem que ele pudesse perceber, acostumara-se e se esquecera das pequenas coisas, dos pequenos gestos que valem muito mais do que um carro ou um telefone celular, deixando o carinho de um lado e comprando os bens de outro.
Entendia isso agora. Errara muito no relacionamento quando acreditou que a Eliana gostava de ter um bom padrão de vida. Melhor seria se não tivessem o que possuíam hoje, mas apenas tivessem um ao outro. Dirceu queria lembrar-se das pequenas coisas que a esposa gostava e se espantou com a dificuldade que sentia nesse exercício mental, ela gostava de dançar, não gostava da direita reacionária, mudança sociais, sorvete... Só isso? Não sabia mais que filmes, músicas, comidas. Não sabia o que queria do sexo porque não se preocupava muito com isso, achava que ela gostava da forma que fosse e nunca lhe perguntara nada! A surpresa de não saber o que ela gostava mostrou-lhe o quanto se afastara!
Saiu caminhando da catedral pela calçada ao lado da barulhenta avenida, mas, para ele, era possível ouvir apenas os próprios pensamentos, mesmo assim, aquele ruído do trânsito doía em seus ouvidos e, caminhando, chegou ao edifício em que trabalhou no seu primeiro emprego, ainda garoto, como office-boy. Resolveu entrar para matar saudades e ir até o alto do prédio, pois ele conhecia um jeito de chegar no terraço e quis conferir se ainda estava fácil de subir, pois, lá em cima, tudo era bem tranqüilo, poderia aproveitar e ver o pôr-do-sol de lá, pois era uma visão muito bonita, de onde se avistava a paisagem da serra da Mantiqueira.
A luz do botão do elevador acendeu-se ao seu toque, aguardou alguns segundos que lhe pareciam muito tempo, a vida toda. A campainha tocou e, ao abrir a porta, muita gente saiu apressada, entrou junto com os outros desconhecidos, pensando que nem Eliana e nem Suzana poderiam fazer o que quisessem, subiu, pensando principalmente na Suzana e nas provocações que ela lhe fizera culminando com a descoberta de tudo. Parecia enlouquecer com a simples lembrança dela o agarrando, enlouquecia porque tinha desejado realmente aquele corpo sensual, e isto estava custando-lhe o casamento... a sua briga com a Eliana fora muito forte, talvez ele realmente não a amasse mais como no início, ele precisava espairecer. Se uma amiga da Eliana o encontrasse agora, colocá-lo-ia dentro de uma clínica para uma terapia urgente, talvez precisasse mesmo, pois não se sentia em condições de seguir adiante no casamento apesar de querer, mais fácil era entregar-se totalmente à Suzana, que o enlouquecia.
Dirceu saiu no último andar, disfarçou um pouco até que as pessoas sumissem pelo corredor e procurou a entrada da escada que levava ao terraço, saiu no alto do prédio que conhecia dos tempos de mensageiro do escritório, quando queria matar o serviço, subia até lá e ficava apreciando a paisagem e pensando na vida. Era disso que ele precisava hoje, matar o tempo e pensar na vida, mas pensar doía muito porque o coração se machucava a cada pensamento.
O vento forte soprava zunindo no ouvido. Encostou-se no parapeito e ficou admirando a paisagem, vendo o quanto a cidade mudara nos últimos vinte anos. Só as montanhas da serra permaneciam as mesmas em tons azulados. Quantos bairros novos surgiram e muitos mais prédios brotaram como ervas daninhas enquanto as pessoas lá embaixo corriam super apressadas feito formigas no meio do campo.
Naquele instante teve consciência de muitas coisas que há muito ele não percebia, primeiro, sentiu a pequenez da sua vida, era apenas mais uma diante de um mundo habitado por bilhões de pessoas, então, por quê sofrer, por quê não se atirar de vez nos seios da Suzana? A segunda foi a certeza de que ninguém mais poderia decidir o seu futuro, somente ele, sozinho, mas ele não conseguia resolver estas suas dúvidas, ficando sufocado, infeliz, sem futuro, saída ou luz no fim de um túnel sem volta em que ele entrara, e, lá embaixo, ele via uma forma de escapar de tudo, voando do vigésimo andar, um salto para o espaço como se fosse o último vôo da sua vida, a adrenalina tomando conta do corpo todo e a velocidade da queda. Qual era mesmo a fórmula da energia? Como se calculava o impacto de um corpo no chão? E= m.c*2. Energia é igual à massa vezes a aceleração ao quadrado. Não utilizava aquela forma desde os tempos de faculdade. Será que um suicida sentia medo e arrependimento ao ver o chão chegando perto? Pensou no horror que as pessoas sentiriam se vissem um corpo estendido no chão, numa poça de sangue, atrapalhando o tráfego. Um salto, um vôo, a magnitude da última loucura ou a covardia do medo da vida e nada mais se poderia fazer.
Tudo por causa da Suzana. Se ele não a visse nua no churrasco naquela tarde, se não lhe desse carona naquela noite, se não permitisse que ela entrasse em sua sala naquela manhã, se ele pedisse demissão antes que tudo acontecesse, se ele nunca a tivesse conhecido ou permitido que ela o tocasse e o beijasse. Mas ele não fizera amor com ela, fisicamente, ele não traíra a Eliana, não consumara o ato sexual, a quem ele estava enganando? A si próprio porque a traição estava ocorrendo nos seus pensamentos, ocorria no seu coração.
E o pior de tudo é que estava em dúvida quanto ao amor da sua mulher, tanto o dele por ela quanto o dela por ele, talvez ela pudesse traí-lo também, mas não podia imaginar que isto ocorresse e a dúvida transformava tudo num redemoinho que levava a um mergulho num poço sem fundo. Teria ele coragem de olhar nos olhos da mulher depois de tudo o que fizera e pensara? Que culpa teria? Ele fora o culpado de tudo porque nunca perguntara a sua mulher dos sonhos dela.
Dirceu ficou ali em cima do parapeito em transe, absorto em pensamentos que iam e vinham, passando a limpo a sua vida num filme rápido como se a hora de morrer fosse aquela, e sentia o ar fresco vindo das montanhas e, sem se preocupar com mais nada, abriu os braços, de pé, na beira do edifício como se fosse voar. Nada mais percebia, ouvia ou sentia, a não ser o calor dos últimos raios do sol do crepúsculo e o vento esfriando o corpo, batendo cada vez mais forte. Fechou os olhos, querendo ser um pássaro para voar o mais alto possível, longe de todos os seus problemas e de todas as suas dúvidas. Queria voar para ficar no ar e não enfrentar a vida lá de baixo, para olhar todos de bem longe.
Tudo começou a girar junto com Dirceu, a serra e os prédios se misturavam no horizonte com as nuvens, com o sol que se punha, com a Eliana e a Suzana girando juntas no céu.
Até que, ao olhar para o alto, viu uma luz forte no meio do céu e pareceu-lhe que um anjo vinha em sua direção e lhe dizia:
_ A verdade, Dirceu, a verdade contém-se em si mesma, ela é eterna, lembre-se, somente a verdade existe!
E o anjo o rodeava dizendo palavras sobre a verdade, Dirceu queria voar com o anjo, queria ir com ele, pois era o momento único da revelação de Deus em sua vida, ele queria voar, e o anjo o chamava para si, chamava-o para voar, sim, era isso, o anjo o chamava para o vôo eterno, para o encontro com Deus, para a nova vida! E ele queria ir de encontro ao anjo, ele ia pisar nas nuvens!
O baque surdo contra o cimento trouxe-o de volta à realidade, Dirceu fora jogado ao chão do terraço do edifício por um homem forte que o agarrou, viu-se cercado por quatro soldados do corpo de bombeiros que fora chamado por alguém que o vira no alto do prédio. Eles o prenderam e o levaram para baixo.
Foi colocado numa maca e carregado para baixo. Um ambulância o esperava ao lado de um carro da polícia militar e do carro do corpo de bombeiros. Dirceu via muitos rostos passando muito rápido, assustados, curiosos, preocupados, e no meio de tanta gente, distinguiu o seu irmão Ezequiel falando:
_ Tudo está bem, Dirceu! Está tudo bem, Dirceu!
Colocaram-no dentro da ambulância que saiu soando o alarme em direção do hospital. Ele não conseguia compreender porque tudo aquilo acontecia, só conseguia pensar que ele estava atrasado para chegar em casa para o jantar e que eles deviam soltá-lo, mas havia enfermeiros fortes dentro da ambulância e ele temeu levantar-se, um médico preparava uma injeção que lhe foi aplicada. O que estavam fazendo com ele? O que estava acontecendo? Não deu tempo de Dirceu saber o que acontecia porque ele dormiu com o sedativo que lhe aplicaram.
Ele acordou num quarto bem iluminado de hospital. Olhou em volta e viu a sua esposa sentada na poltrona lendo uma revista, ficou imóvel, ouvindo os sons que vinham do corredor, que constrastavam com o ruído das páginas sendo viradas pela leitora. Ficou pensando no que estaria acontecendo, chamou por Eliana.
_ Graças a Deus – ela disse, indo até ele – Você está sentindo-se bem?
_ Estou ótimo. O quê aconteceu comigo? Tive um enfarte? O que foi?
_ Não, está tudo bem, você só está muito estressado, precisa descansar.
_ Eu tive um enfarte? – insistiu porque não se lembrava de nada, apenas de estar na Catedral de São Dimas.
_ Mais ou menos, não foi nada grave.
_ As crianças estão bem?
_ Estão bem, deixei-as com a minha mãe.
Dirceu desistiu de perguntar sobre o que sofrera, esforçou-se para se lembrar de alguma coisa e acabou conseguindo, estava entrando no prédio e subira até o terraço, só até aí que se lembrava, talvez tivesse tido um enfarte lá em cima, alguém deve tê-lo encontrado desmaiado e o trouxeram para o hospital, ele realmente sentia-se muito pressionado nos últimos dias.
Um bom tempo depois, o clínico geral entrou e os efeitos do sedativo haviam passado por completo, mas Dirceu continuava sem entender o que se passava com ele. Como a Eliana saíra, ele perguntou ao médico o que lhe acontecera:
_ Você não se lembra?
_ Não.
_ Você quase caiu do vigésimo andar. Ninguém sabe se você estava querendo suicidar ou se estava passando mal lá em cima, se o corpo de bombeiros não chegasse à tempo, agora a sua família estaria fazendo o seu enterro.
Com a resposta do médico, Dirceu sentiu que chegara ao fundo do poço, afogado em tantas dúvidas e lágrimas que não foram choradas. Abatido, esperou que a mulher voltasse ao quarto e, quando ela finalmente reapareceu, pediu-lhe desculpas. Ela achou que fosse por sua tentativa de suicídio mas só ele sabia porquê. Quando os filhos foram autorizados a entrar, não se conteve, e começou a chorar, enfim, um choro de muitos anos, porque percebeu o quanto os amava e o quanto seria triste ficar sem eles, pedia-lhes desculpas, agora, porque pensou que realmente estava tentando suicidar, mas não lhes disse isso, apenas se desculpava, os filhos também o desculpavam, mais para não o desagradar do que por entender. Dirceu compreendeu o quanto os seus filhos e a sua esposa o amavam e sentiu remorsos pelo que estava fazendo, queria que aquelas lágrimas levassem embora a culpa, a traição e as dúvidas, precisava descobrir onde perdera o fio que unia aqueles corações, queria encontrá-lo e costurá-los com aço inoxidável.
E pensou nas coisas mais simples da vida. Tentou lembrar-se do último abraço que dera em seu filho e do último carinho que fizera em sua filha. Queria recomeçar, trabalhar menos, tirar mais férias com a sua família, queria reconhecer a sua mulher, que o acompanhava nestes anos todos, quais eram os seus sonhos, quais as coisas que ela gostaria que ele fizesse, não queria mais desconfiar de nada, apenas retomar a vida feliz do início do casamento.
Após aquela seção de choro e de reencontro consigo mesmo, a mulher e os filhos se retiraram e o deixaram sozinho, ela retornaria logo mais para passar a noite com ele, apenas levaria as crianças para a casa da avó, no dia seguinte ele teria alta, ficaria apenas um dia em observação. Eles desceram as escadas e saíram pela porta da frente sem notar que uma mulher lia uma revista tranqüilamente num sofá lateral, de onde ela os avistou saindo, mas eles não a viram.
Pacientemente, Suzana esperava a sua vez de visitá-lo.
Ela se levantou e deixou a revista de lado, dirigiu-se ao balcão e perguntou à atendente se poderia entrar, esta permitiu.
Dirceu assustou-se ao ver Suzana entrando pela porta. Não estava preparado para vê-la novamente ainda mais tão exuberante como naquele dia em que ele estava enfraquecido pelos sedativos.
_ Vim aqui saber se você está bem.
Ele queria que ela saísse pois já estava passando por outra confusão mental, quase negando tudo o que decidira há pouco sobre a sua vida e a de Eliana.
_ Estou bem, um pouco cansado, mas bem.
_ O que você teve?
_ O médico disse que estou estressado. Quis me matar.
Ela ficou quieta, olhou-o, pensativa.
_ Fiquei com medo de perder você.
Ele não respondeu nada, apesar de querer dizer que ela nunca o tivera, que já o perdera, e que ele não ia querer que ela atrapalhasse a vida dele, mas não conseguiu, apenas calou-se.
_ Eu gosto do seu jeito, Dirceu, gosto de você, estou esperando que você se recupere, queria que você me visitasse.
Ele respondia apenas com ruídos, um “ã rã” gutural e seco. Não podia visitá-la, seria destruir-se de vez.
_ Queria fazer uma coisa com você. Quando você ficar bom, vamos conversar no almoço. Tchau.
Ela saiu. Desta vez fora apenas simpática e não fizera nada que o atiçasse. Ele pensava que talvez ela estivesse arrependida das coisas que tinha feito com ele, de quase levá-lo ao suicídio, de enlouquecê-lo. Mas ele sentia que ela queria realmente ficar com ele, por quê? E ele ainda que lutasse com a razão para esquecê-la, parecia fadado a se entregar de vez, pondo todo o seu casamento a perder. Não era possível, alguma coisa o levava a querer a sensação do sexo com aquela mulher.
Dirceu ganhou quinze dias de licença do trabalho para se tratar da fadiga e aproveitou para descansar bastante em casa. Pôs muita coisa em dia, conversou muito com a Eliana, levou os filhos nas suas atividades, cuidou do jardim, pintou algumas coisas que estavam pedindo uma nova mão de tinta, relaxando a cabeça e fazendo planos para uma viagem de férias em que iriam apenas ele e a esposa, deixariam os filhos com os avós. Pretendiam excursionar pelo Caribe numa espécie de segunda lua de mel. Dirceu só não conseguiu tirar o desejo pela Suzana da cabeça e contar a verdade para Eliana.
“A Verdade”, Dirceu pensava nestas palavras e sentia-se confuso, pois tinha a certeza de que alguém lhe falara disso, não conseguia lembrar-se mas alguém lhe dissera que a verdade era a única coisa que lhe restaria, ele sabia que era preciso falar a verdade para a esposa, mas como?
Dirceu não teve coragem de aproveitar aqueles dias para conversar com ela sobre o quê lhe acontecera na fábrica entre ele e a Suzana. Ele sabia que estava errado, sentia isso no coração, mas a covardia lhe tomava o corpo quando pensava em dizer.
Eliana, por sua vez, evitou tocar no assunto, procurava dar força moral para que o marido se recuperasse bem e esperava que ele tivesse vontade de conversar sobre as fotos e esta outra mulher. Ela sentiu-se culpada pelo quase suicídio do marido e criava um ambiente agradável como se tudo estivesse em paz na casa. Tinha medo de que ele saísse simplesmente e se matasse em qualquer lugar.
Ao retornar para o trabalho, todos o trataram com mais deferência que o normal, alegrando-se pelo companheiro de trabalho que se recuperara, fizeram algumas brincadeiras com o descanso dele.
Disseram que ele tirara uma folga na hora certa, que os dias tinham sido terríveis, com o chefe pegando no pé de todo mundo, principalmente depois que os norte americanos não tinham ficado muito satisfeitos com o desempenho da fábrica no último semestre. Queriam lucro, mais lucro.
O Edgar não mudara nada mas naquele dia do retorno ao trabalho do Dirceu, ficara um pouco na sua, sem brincar muito e nem tocou no assunto da Suzana, esta também preferiu não falar muito e nem o assediou mais da maneira que estava fazendo, resolvera esperar que ele se manifestasse.
Dirceu conseguiu segurar-se uns dias sem tocar em assunto nenhum que não o trabalho com a Suzana, que permaneceu sem insistir. Aos poucos, porém, aquele clima mais ameno foi retornando e, quase um mês depois, eles almoçaram na mesma mesa do refeitório da fábrica, de frente um com o outro. Ela aproveitou para passar os pés na perna dele de uma maneira provocante.
Foi o suficiente para que Dirceu sentisse novamente o tesão que estava adormecido e tremesse por inteiro.
_ Poderia ser hoje? – Ela perguntou.
_ O quê?
_ Você sabe, bem que poderia ser hoje... estarei sozinha na minha casa, rapidinho, só prá matar saudades...
_ Mas eu não posso fazer isso assim! Sem mais nem menos! Não posso chegar atrasado em casa, minha mulher...
_ Ah, Dirceu, porque você não vai devolver as chaves do meu apartamento...
Ela colocou uma cópia da chave do apartamento em cima da sua mesa. Aquela chave ficou lá brilhando e o lembrando do pecado. Seria possível?
Foi inevitável. Mesmo com o remorso, ele não conseguia mais resistir, quase tinha ido à loucura, e ainda não sabia se tinha sofrido um enfarte ou se tinha mesmo tentando pular. Aquele dia estava meio apagado da mente, lembrava-se apenas de detalhes, uma voz lhe dizendo “a verdade” que o atormentava, mas o que continuava era o desejo pela Suzana que aumentara com o tempo. Mesmo com a melhoria no relacionamento com a Eliana, ele não parava de pensar na outra, continuava querendo-a do mesmo jeito.
Ele achou uma desculpa para chegar mais tarde em casa:
_ Eliana, hoje eu vou atrasar um pouco, estava pensando em passar no supermercado para olhar uns preços, eu queria comprar uma coisa para mim.
Apesar do aperto que sentiu no coração, talvez com medo de que Dirceu fizesse alguma loucura, Eliana,  não desconfiou que pudesse ser uma fuga para uma traição pois julgava que o marido estava ainda convalescente e se recuperando do estresse, perguntou que horas que ele ia chegar aproximadamente, ele disse que ia ser rápido, não ia demorar mais que uma hora e meia, antes das oito ele estaria em casa.
Durante o expediente da tarde, ele disse para a Suzana que iria lá. O plano estava traçado, Dirceu tinha certeza de que ninguém descobriria, pois ele queria que tudo fosse secreto.
Antes de ir para o apartamento dela, ele passou num chaveiro e fez uma cópia da chave, e, numa farmácia, comprou um pacote de preservativos. Colocou a chave no buraco da fechadura, respirou fundo, naquele momento esqueceu de tudo o que pudesse vir de conseqüências, girou a chave e a maçaneta, abrindo a porta lentamente.
_ Entre, Dirceu, abra outra porta agora!
Lá dentro, Suzana, vestida apenas com aquela camiseta que ela gostava de usar, aguardava-o. Ele se esgueirou pela fresta da porta entreaberta e, ao fechá-la, ela o abraçou e o beijou. Não havia mais resistência e nem remorsos, nem culpa pelos dias passados, nem dúvidas quanto ao comportamento mais correto, nem lembranças das suas promessas.
Foi a primeira vez entre os dois e foi tudo muito rápido e desajeitado. Em pouco tempo, o sexo se consumou no sofá da sala de uma maneira mau acomodada, com a camisinha quase sendo esquecida.
Ao sair, Dirceu ainda brincou ao devolver a chave.
_ Espero que você esqueça esta chave outra vez lá na minha sala!
A traição que já estava na cabeça dele foi completada no corpo finalmente sem qualquer resistência. Não foi mais que quinze minutos e, praticamente, ele nem se atrasou muito para chegar em casa e fazer tudo igual ao que sempre fazia de tal forma que ninguém poderia imaginar que qualquer coisa tivesse acontecido que não fosse o trânsito, uma parada maior na padaria ou uma compra pequena de supermercado, ou realmente olhar uns preços de alguma coisa que se queria comprar.
Entrou em casa como se nada houvesse acontecido, encenando ainda melhor a mesma cena que repetira mais de três mil vezes nos últimos dez anos. Guardou o carro, disse “querida, cheguei”, colocou aquela pasta ao lado da estante, tomou um banho, foi jantar. Tudo sempre igual, quem estava de fora diria que não acontecia nada de diferente naquela casa. Nem mesmo a história do preço ele esqueceu, dizendo que não encontrou o que procurava no supermercado. Em vez de chegar cheio de culpa, chegava fingindo o ser mesmo de sempre para disfarçar. Não despertava nenhuma suspeita.
Só que o estrago na sua cabeça estava feito. Não que ele sentisse muitos remorsos pelo que fizera, mas mais porque percebera que poderia fazer o mesmo outras vezes sem ser descoberto e quase sem culpa. De alguma forma, a proximidade da morte naquela tarde em cima do prédio, fez com que ele visse as coisas de modo contrário ao que acreditava antes. Queria aproveitar o tempo que ainda tinha pela frente pois, aos trinta e seis anos, talvez não tivesse nunca mais outra oportunidade de possuir uma mulher como aquela. Deixara esquecidas em algum canto aquelas convicções que tinha e que o impediram de transar com a Suzana antes. Agora, sentia-se mais forte, mais capaz, mais poderoso até.
A segunda vez demorou mais de quinze dias para acontecer porque o Dirceu não queria dar bandeira e ficar se expondo por aí. Tinha a consciência de que a maioria dos homens eram pegos muito facilmente porque expunham-se demais. Para ninguém ele falara sobre o que acontecera. Até diminuiu as vezes em que falava com a Suzana, evitando comentários no escritório. Ali, todos pensavam que, após a crise, ele tinha regenerado-se e esquecido dela, até o Edgar parara de falar sobre ela e o tratava com mais respeito um pouco.
Mas, nesta segunda vez, Dirceu ficou um pouco temeroso pois, na hora em que ele abriu a porta do elevador para sair do prédio, lá embaixo, após consumar o ato sexual com a Suzana, deu de frente com a Telma, aquela amiga da Suzana, que também trabalhava na fábrica mas em outro setor, e levou um susto, seu coração disparou como se estivesse sendo pego em flagrante, tentou disfarçar, cumprimentou-a, evitou falar alguma coisa e saiu rapidamente antes que ela pudesse perguntar o que ele fazia ali. Se a Telma morava no prédio, certamente sabia que a Suzana também morava ali e, óbvio, conversava com a amiga que devia contar-lhe que ele estava com ela. Dirceu precisava tirar isto a limpo no dia seguinte, queria saber se a Suzana lhe falara alguma coisa.
Em casa, Eliana percebera que o marido, após o incidente no prédio, ficara muito mais tranqüilo e carinhoso, tanto com ela quanto com os filhos. Ele estava mais calmo e não se preocupava em ficar assistindo televisão. Aqueles dias de licença lhe fizeram bem, ela achava, porque ele pôde perceber que havia outras coisas para se fazer em casa e não somente assistir televisão.
O relacionamento sexual entre ambos também melhorara, agora ele queria mais vezes e com mais calma, não tinha mais tanta pressa e ela estava gostando desta mudança sutil, ele ficara um pouco mais carinhoso e ela tinha certeza de que ele havia esquecido da outra definitivamente, não fosse um fato curioso que notara e que a deixara com a pulga atrás da orelha: um cupom fiscal de farmácia em que ele tinha comprado três caixas de preservativos. Até aí tudo bem porque eles costumavam usar preservativos nas relações para evitar gravidez. O que a deixou curiosa foi o fato do cupom marcar três pacotes, enquanto na casa haviam apenas dois. O terceiro pacote estava sumido em algum lugar. Ela pensou que pudesse estar perdido ou... poderia estar na pasta? E porquê circularia fora de casa aquele pacote? A mente dela começou a funcionar e a pensar em coisas erradas que ele pudesse estar fazendo. Precisava descobrir alguma coisa, mas ele estava tão igual em todos os dias nos seus atos que era impossível pensar até em quando poderia ter ocorrido alguma coisa com alguma outra mulher.
Eliana começou a ficar atenta aos movimentos do marido, como primeira providência, ligou para a Marinês, a mulher do Edgar e conversou muito com ela, queria saber se o marido lhe contara alguma coisa a respeito do Dirceu, mas esta negou qualquer comentário além das coisas de trabalho que estavam ocorrendo, na verdade, até adiantou que o Edgar lhe contara que, havia uma possibilidade do Dirceu receber  uma promoção, pois se comentava, entre os colegas de trabalho, que a empresa iria levar alguém para um curso de três semanas nos Estados Unidos e que a vaga para o curso era disputada por três engenheiros da fábrica, um era o Dirceu.
Apesar do que Marinês lhe disse, Eliana não satisfez-se, começou a prestar atenção no horário em que o marido chegava em casa todo dia, e este não variava muito, atrasava cinco ou dez minutos às vezes, mas era sempre o mesmo horário. Tirando um dia em que ele telefonara dizendo que ele ia fazer umas comprinhas rápidas em que atrasou cerca de quarenta minutos, nada tinha mudado. O sexto sentido feminino começou a aguçar-lhe a mente e lhe dizer que havia alguma coisa anormal nele fazer compras, mas como ele realmente trazia alguma coisa, era impossível pensar que ele estivesse mentindo.
Dirceu ficou novamente dividido entre as duas mulheres mas de uma maneira diferente, vencidas as preocupações quanto ao fato de estar traindo a esposa, ele se acomodou naquela situação que lhe ficara ótima, desde que não pensasse que deveria enfrentar a verdade divina um dia, pois ele sabia que pecava contra tudo, mas, dentro de sua cabeça, procurava ignorar este lado da traição. Preferia curtir aqueles momentos de desejo.
Mas a sua vontade não estava mais se satisfazendo com aqueles encontros esporádicos, principalmente porque havia um acordo não verbalizado entre ele e Suzana de se falarem o mínimo necessário dentro da fábrica. No trabalho, apenas trabalho, não se tocavam e nem ficavam perto um do outro. Quando ela ou ele queriam alguma coisa, apenas trocavam rápidas palavras, como se fosse um código secreto que houvesse e ambos já sabiam do que se tratava. Tomavam muito cuidado também para que a freqüência dos encontros fosse pequena para não despertar suspeitas na Eliana. Mas um fato curioso fez com a Eliana tivesse sua suspeita aumentada.
Marinês, fora ao Carrefour fazer uma compra pequena de alguns produtos que precisava e viu o Dirceu, de longe, saindo do supermercado. Por coincidência, naquela tarde, a Eliana telefonou-lhe para conversar sobre outros assuntos, mas ela, inocentemente, disse-lhe:
_ Vi o Dirceu no Carrefour hoje, na hora do almoço, fiz umas compras e ele estava saindo quando eu estava chegando, mas ele nem me viu!
_ É, ele me disse que iria fazer umas compras, mas ele disse que ia depois da hora de trabalho, que bom que ele foi na hora do almoço! Assim ele chega mais cedo.
Às cinco e meia da tarde, Eliana aguardava que o marido chegasse, pois sabia que ele tinha ido no supermercado na hora do almoço, mas ele não chegou no horário normal. E nem cinco ou dez minutos depois como eventualmente ocorria por algum problema de trânsito.
Naquele dia, o Dirceu chegou uma hora e dez minutos atrasado em relação ao seu horário normal. Eliana evitou comentar o assunto da hora em que o marido pôs o pé na casa e fez o mesmo ritual de sempre. Foram cinqüenta minutos de agonia para ela, um milhão de coisas e um pouco mais passaram pela sua cabeça, desde a possibilidade dele ter sido assaltado num semáforo, até uma batida ou um pneu furado. E se ele tivesse dado e desculpa do pneu furado, chegando com a mão suja, teria sido melhor para ela, mas ele chegou limpo, com a mesma cara, dizendo que o supermercado estava muito cheio e ele demorara um pouco mais do que o normal.
Por dentro ela sabia que era tudo mentira mas não sentia forças para tomar uma atitude naquela hora, engolindo em seco uma mentira deslavada do marido. Ela sabia que era mentira e que isto só podia significar uma coisa: ele a traía com aquela mulher. Ela sabia que era com a Suzana, ninguém precisava dizer-lhe mais nada, seu sexto sentido era muito forte. Para testá-lo, na hora de deitar-se, ela se manifestou interessada num programa com o marido, queria saber se ele recusaria ou como se comportaria e realmente conseguiu comprovar muita coisa para ela quando, apesar de não recusar o programa, ele acabara traído pela impotência sexual naquela noite, ele ficou chateado por falhar, pois não se admitia esse tipo de falha, ainda mais porque ele sabia o que se passava, sabia que a falha com a Eliana ocorrera por causa de ter transado com a Suzana algumas horas antes, somado ao já cansativo dia que tivera, e, principalmente, à falta de desejo que já estava sentindo pela Eliana.
Dirceu sentiu-se mal com a falha, mas o pior é que a Eliana apenas confirmou o que sentia por dentro. Tinha a vontade de bater no marido, mas queria fazer algo mais sutil, queria uma vingança mais suave e evitou perder a calma, ao invés disso, ainda consolou o marido dizendo que aquilo acontecia com todo mundo, que ela entendia, que já tinha ocorrido outras vezes, que ele talvez estivesse fatigado e que ela não ia ficar incomodando-o. Deu-lhe um apoio moral, ainda que falso, mas o consolou para que ele não desconfiasse de que ela já sabia que havia a traição.
Eliana esperou que ele dormisse, levantou-se e foi olhar o que encontraria na pasta dele. Achou uma chave diferente, pensou que só poderia ser da casa da outra. Decidiu fazer uma cópia dela. Naquela noite deixou lá mesmo a chave e, no dia seguinte, ele chegou no horário normal, ela aproveitou o horário do banho, pegou a chave na pasta, foi até o chaveiro mais próximo e fez uma cópia. Agora ela tinha um trunfo importante, ainda não sabia exatamente o que iria fazer com aquilo.
Dirceu começou a ter dificuldade em se controlar. Cada vez mais queria ficar mais com a Suzana. Começou a chegar no ponto oposto ao que passara. Se antes, ela o queria com exagero, agora era ele que a queria. Se antes ela o assediava, agora era ele quem fazia a corte. De maneira discreta, começou a tomar a iniciativa dos próximos encontros, mas Suzana começou a evitar que a freqüência daqueles encontros aumentasse, ela começava a perceber que não era mais a dona da situação, que não era mais ela quem tomava a iniciativa e não estava gostando mais daquela situação, que já se tornava perigosa, além do mais, ela não estava querendo ficar com o Dirceu e estava com medo de que ele pudesse largar a esposa com a intenção de ficar com ela. Fato que ela não queria pois um homem no seu pé não lhe cabia bem, perderia a liberdade de ficar com quem quisesse e de curtir alguém diferente de vez em quando.
Dirceu chegou para ela dizendo que iria no apartamento dela naquela semana e ela recusou, ele não gostou da recusa mas não se deu por vencido, e perguntou:
_ O que acontece, Suzana? Agora que eu quero ficar com você mais vezes, parece que você não quer mais...
_ Não é isso, Dirceu, tudo tem a sua hora, e eu não quero exagerar, quero ir devagar!
_ Eu acho que você não gosta mais de mim!
_ Eu gosto de você, só que eu não quero ficar o tempo todo com você, nosso relacionamento é gostoso assim, de vez em quando, e não todo dia!
O fato é que, de um momento para o outro, houve uma mudança. Ela realmente o evitava, não queria mais nada porque pensava que aquele relacionamento já tinha esgotado o seu tempo, não estava mais interessada no Dirceu, não queria mais saber dele, já havia curtido bastante e aquele assédio constante a incomodava. Estava cansada dele e não via mais prazer em encontrá-lo. Estava satisfeita, fizera o que queria e, na verdade, Dirceu estava atrapalhando os seus encontros com outra pessoa, com quem ela já mantinha uma freqüência mais antiga.
Com Suzana recusando convites, Dirceu parou de chegar atrasado em casa, fazendo com que Eliana se acalmasse, mesmo assim, através da Marinês, conseguiu o endereço da Suzana, seu plano era aguardar até o dia em que o marido dissesse que iria atrasar-se, queria fazer uma flagrante dos dois, talvez assim pudesse colocá-lo contra a parede e fazer com ele desistisse de vez daquela mulher ou fazer com que a separação tivesse um motivo forte e claro, em que o culpado seria o marido.
Dirceu não queria compreender aquela recusa e resolveu fazer uma surpresa para Suzana, iria no apartamento dela,  levaria um vinho e uma caixa de bombons para lhe fazer um agrado, ligou para a esposa e lhe disse que ia atrasar um pouco, a mesma desculpa que já não colava mais.
Era a oportunidade que ela queria para dar o flagrante nele naquela tarde. Iria pegá-lo de surpresa numa doce vingança. Dirceu só poderia estar traindo-a com a Suzana, afinal, fora por causa dela que ele quase tinha caído daquele prédio e Eliana sabia onde ela morava.
Às cinco, Suzana saiu dizendo que não retornaria até o final do expediente, de todas as formas, ela tentava evitar que o Dirceu ficasse no seu pé e passava agora a fugir dele sem meias desculpas. Ela continuava, como sempre, a dona das sua vontades.
Às cinco e quinze, os outros funcionários da fábrica já haviam saído. Às cinco e vinte e oito, Dirceu estava dentro de uma loja, escolhendo um vinho e uma caixa de bombons para fazer uma surpresa para a Suzana.
Eliana entrou no prédio falando para o porteiro que ela era amiga da Suzana. O homem, sem pestanejar e sem perguntar o seu nome, deixou-a entrar, nem mesmo avisou a Suzana pelo interfone. Ela subiu pelo elevador, parou no andar em que Suzana morava e se dirigiu até a porta do apartamento. Parecia tudo silencioso e ela colocou a cópia da chave que trazia na fechadura e a virou, estava certa, virou a maçaneta levemente. Suzana deveria estar lá dentro. Eliana abriu a porta lentamente, evitando fazer barulho. Se ela estivesse lá com o seu marido, queria pegá-los em flagrante. Olhou pela fresta da porta e não viu ninguém na pequena sala.
Ao entrar no pequeno apartamento, ouviu o barulho do chuveiro funcionando, “Que safado, tomando banho junto com ela”, pensou. Aproveitou para olhar o apartamento, até que bem decorado, procurava pela pasta do marido, que denunciaria a sua presença mas não a encontrava, pensou que ele poderia deixá-la no carro. Por um momento, ela ficou sem saber o que fazer. Pois não conseguia imaginar no que falar quando os pegasse ao sair do banheiro. Não queria perder a cabeça, queria apenas confirmar o que sentia, como se um certo prazer em sofrer a tomasse naquele instante.
Vê-lo com a outra seria um trunfo, uma forma de pressioná-lo, um meio de quê? Sentou-se no sofá, olhando para a porta do banheiro e começou a pensar no que valeria aquela informação. Pediria o divórcio? Ela o humilharia? O quê faria, enfim? Não sabia que atitude iria tomar, mas queria apenas ter certeza do que acontecia.
O chuveiro foi desligado. Eliana ouvia vozes lá dentro, barulho de brincadeiras, mas não estava reconhecendo quem falava, pensava: “Estão se enxugando e se divertindo, safados, sem vergonha!”. Ela resolveu esconder-se na cozinha pois teve a certeza de que eles iriam até o quarto ou a sala para consumar o ato. A porta do chuveiro se abriu e Eliana ouviu que eles foram para o quarto.
Quando ela foi até o quarto para dar o flagrante, ouviu barulho na porta que estava se abrindo, voltou a esconder-se e se surpreendeu quando Dirceu entrou alegre e sorridente pelo apartamento, dizendo:
_ Surpresa!
E foi mesmo uma surpresa quando, ao não encontrar ninguém na sala, ouviu barulho no quarto e foi até encontrando Suzana e ... Telma! As duas nuas abraçadas, divertindo-se, namorando, chocando-o, Eliana veio sorrateira por trás e as viu, mas ninguém percebeu que ela estava lá.
_ O que é isso? – ele perguntou instintivamente.
Suzana, surpresa com a presença dele mas de nenhuma maneira abalada, acabou dizendo de maneira incisiva:
_ Isso é o que você está pensando que é!
Ele olhou para as duas, fez um gesto com a mão direita, juntando e esfregando os dedos indicador e médio.
_ Quer dizer que vocês duas...
_ Sim, nós duas estamos juntas transando na cama.
_ Por isso você começou a me evitar!
Nesta hora, Eliana saiu de trás da porta, onde se escondera momentaneamente e disse:
_ Surpresa, Dirceu!
Dirceu congelou. Virou-se lentamente querendo que fosse mentira, querendo que a voz que ouvira não fosse de Eliana e, ao vê-la, ficou com as pernas bambas de nervosismo.
_ E você? O que faz aqui?
_ Vim dar um flagrante em você e encontrei isso aí. Quer dizer que você estava no supermercado! Safado! Pode começar a se explicar!
A partir daquela hora, a cabeça dele começou a pirar e entrar num turbilhão de idéias. Tentava compreender o que acontecia, tentava compreender o seu coração traído mais de uma vez, primeiro, por ele mesmo, que não resistira à tentação e caíra nas teias da Suzana, depois por ela, que após prová-lo bastante, começou a negá-lo porque ficava com a Telma. Não entrava na cabeça dele o bissexualismo dela. Com a Telma, com outra mulher! Não era possível! Todo aquele sentimento de poder, de altivez, de força, viera à terra. Ele não era nada, era um objeto nas mãos daquela mulher louca de sexo! E além do mais, a Eliana, a mulher que escolhera para passar a vida estava ali, estava descobrindo tudo o que ele estava fazendo, com que cara olharia para ela?
Dirceu não resistiu ao choque. Sentou-se no sofá e ficou parado olhando o nada como se tentasse entender aquilo. Ele não estava preparado para ser humilhado duas vezes, pela amante e pela mulher. O tempo todo estava sendo enganado pela Suzana, que nunca o amou, apenas o queria sexualmente, e era isso que ele queria também, mas não apenas isso, queria o respeito, no fundo, queria que prevalecessem as leis antigas em que o homem seria o dominante, o dono de todas as fêmeas... que idiota que ele fora! Pensava que era o melhor! Que tudo o que fazia estava certo, que era intocável, mas, no fundo, era apenas um objeto nas mãos daquelas mulheres, um idiota perfeito, apenas isto.
Colocara em risco o seu casamento em troca de uma mulher que gostava de outra mulher! Como pôde ter cometido um erro tão grande e absurdo? Sentiu-se humilhado, revoltado, indignado, e, acima de tudo, envergonhado por ter sido descoberto. Se Eliana não estivesse lá, talvez até pudesse ter acabado tudo e voltado à sua vida normal mais aliviado, continuaria indignado, mas, pelo menos, não se sentiria envergonhado e ninguém mais saberia de nada, uma vez que ele não iria falar desta experiência para ninguém.
Suzana e Telma se vestiram enquanto Eliana e Dirceu ficaram na sala. Quando foi para a sala, Suzana quebrou o silêncio:
_ Desculpem pelo ocorrido mas, por favor, queiram se retirar, vão embora, vocês não são meus convidados, eu não pedi que vocês entrassem aqui, não autorizei, vocês estão dentro da minha casa...
_ Não precisa falar mais, eu já entendi tudo. Vamos embora, Dirceu! – E Eliana disse “Dirceu” como se falasse no diminutivo pejorativo – Temos muito o quê conversar!
Ele não reagiu no primeiro instante, ainda estava chocado e perdido em pensamentos. Depois de uma agitada nos seus ombros, ele acordou e se levantou cabisbaixo, evitando encarar a Eliana por sentir-se envergonhado. Ele olhou para Suzana.
_ Por quê? Eu só queria saber o por quê? Pensei que você gostasse de mim!
_ Eu gosto – ela disse – de você, da Telma, eu gosto de quem eu quero gostar.
_ Tanto faz para você, e por quê eu? Por quê você fez tudo isto comigo?
_ Gostei de você, queria curtir um pouco, achei que você era um homem interessante.
Ele tomou a sua pasta e se retirou sem olhar para a Eliana. Desiludido, perdido, sem rumo, sem compreender. O seu mundo tão certo e seguro veio abaixo pois se sustentava em frágeis modelos de vida que nada mais eram do que aparências, finalmente, ao chegar no seu carro com Eliana ao lado, resolveu que deveria olhar para ela e tentar explicar o inexplicável, como se pudesse mostrar uma rocha e dizer que aquilo era uma árvore, não conseguiu pronunciar nem uma palavra, apenas chorou. Chorou um arrependimento que vinha da alma por ter traído a ela e a si mesmo. Por compreender que não valia a pena aquilo tudo, que trocara o certo pelo insano e que corria o risco de perder a família que tivera.
Ele entrou no carro. Eliana seguia-o pelo caminho de volta no carro dela, mas ele mudou de direção e entrou na rodovia Presidente Dutra, ela foi atrás, ele acelerou e sumiu na frente dela, ela não pôde acompanhá-lo porque ela não quis arriscar uma velocidade tão alta e acabou parando no posto de guarda, comunicou os policiais, contou que o marido estava transtornado, que podia causar um acidente, a polícia rodoviária acionou o contingente que fiscalizava a rodovia.
Dirceu dirigia em alta velocidade, sozinho, seus pensamentos não conseguiam se concatenar, seus reflexos eram inconsistentes, passou as cidades do vale, Caçapava, Taubaté, Pindamonhangaba, Roseira, passou no pedágio não parou, seguiu pela pista do Sem Parar e continuou acelerando, a polícia rodoviária foi atrás.
            Em Aparecida, perdeu-se numa curva de onde se avistava a Basílica Nacional.

                                                                                                                             Fernando Scarpel - 1999