No subúrbio de Salvador, nasceu uma menina negra, igual a milhares de meninas negras que nascem todos os dias na cidade, filhas de pais tão pobres que, às vezes, elas vêm ao mundo dentro de casa, com mães sofrendo as dores do parto, auxiliadas por velhas parteiras, já cansadas de ver tantas crianças nascendo e se perdendo, tão fácil é um filho perder-se neste mundo. Pode ser que ninguém roubará estas crianças dos pais, mas, também, elas podem encontrar outros lares na prostituição, nas drogas, ou em ambas, não raramente, acontece de algumas encontrarem lares no exterior, depois de uma agente social convencer seus pais a lhe a entregarem, em troca de uma cesta básica, dinheiro ou promessas que não se cumprem. E assim vão surgindo gerações de crianças que os motoristas vêem nos sinais de trânsito pedindo esmolas, recusadas na maioria das vezes, vidros fechados no calor insuportável de Salvador, cujo futuro é, na maioria das vezes, o crime, as drogas, a prisão e a morte.
Mas, nasceu esta menina negra no hospital público, ao olhá-la, sua mãe, Sarajane, viu-a muito preta, mais negra que qualquer um dos seus outros filhos, dando-lhe, então, o nome de Preta de Breu de Santana, e assim foi registrada no cartório, sob o olhar de peixe morto do escrivão, tão acostumado estava aos estranhos nomes que os brasileiros dão aos seus filhos. Preta era a primeira filha daquele casal muito pobre, que já possuía onze filhos homens, segundo a crença popular, o sétimo haveria de transformar-se em lobisomem. Tendo sido o seu parto normal e pouco doloroso para a mãe, na manhã do dia seguinte ao nascimento, estava a caminho de sua casa. O ônibus parou no ponto, na beira do morro coalhado de barracos, debaixo de um sol forte, nem sinal de sombra ou chuva, a mãe olhou a escadaria e iniciou a subir os degraus mal feitos auxiliada pelo filho mais velho. Não havia felicidade ou tristeza expressa em seu rosto, apenas aquela certeza de que era preciso viver e cuidar de mais uma criança, talvez um pouco satisfeita estava a mãe, ao ver que tivera uma menina a quem poderia compartilhar a sofrida vida de mulher.
A mãe entrou no barraco à beira do morro, uma pequena cama já estava ajeitada, como se fosse um berço, para receber a menina. Todas as tralhas da família se amontoavam naqueles cômodos feitos de madeira, papelão, uma parte de tijolos, um frio chão de cimento. E, quando vinha o inverno, as chuvas fortes se infiltravam na terra, ameaçando ruir e levar tudo. Nestas horas, eles se protegiam no cômodo de tijolos, pois o julgavam mais seguro, o pai havia feito umas canaletas de cimento que desviavam a água para a lateral da casa. Outro ano um barraco próximo desceu o morro numa enxurrada de lama. Morreu gente, conhecidos da família. Também havia muita reza para os santos católicos, para os deuses do candomblé e para todos os que pudessem interceder de outros lugares, com forças superiores às humanas, pois os homens, há muito tempo não ajudavam a gente que vivia naqueles morros. Promessas de candidatos aos cargos públicos houve muitas, passaram por lá futuros vereadores, deputados e senadores e, talvez a situação nunca tenha resolvido-se porque nunca passou por lá um futuro presidente da república, pois, todos os candidatos à presidência que chegaram perto da favela, não se elegeram.
Quando Preta de Breu tinha cinco anos, seu pai ficou desempregado. Era um tempo difícil, quando o Brasil ainda sofria os problemas de um dinheiro pobre e desvalorizado. A família quase passando fome, Jadilson falou uma noite para a mulher:
_ A gente vai para São Paulo.
A mulher aceitou pois a desilusão de tudo a fizera perceber que, entre morrer de fome na Bahia ou em São Paulo não haveria muita diferença. Vida dura seria em qualquer lugar.
Mas nem todos os filhos de Jadilson e Sarajane quiseram ir. Os mais velhos, tão acostumados estavam àquela vida, já envolvidos na comunidade, dois que já estavam até casados, preferiam ficar. Também ficaram o quarto filho, o quinto e o sexto. O terceiro filho, o Josinaldo, há muito tinha sumido no mundo, havia envolvido-se com droga, primeiro como consumidor, depois como repassador e, depois, como um pequeno tráfico, o pai o dera por perdido, os irmãos por morto, pois ele simplesmente desaparecera, tinha uma dívida com um traficante e fora ameaçado de morte. O sétimo filho, o Josualdo, que deveria ser o lobisomem, desistiu de ser homem e foi viver no porto, vendendo seu corpo para insatisfeitos marinheiros que não o olhavam torto. Assim, Preta de Breu, que contava com quase seis anos, com quatro irmãos, seguiu junto com os pais para um lugar descrito como maravilhoso e cheio de sonhos que se realizavam.
A viagem foi difícil, de ônibus pela Rio-Bahia, toda esburacada, sem banho, pouca comida. A esperança do pai dela era encontrar o irmão, que não via há mais de cinco anos e mandara uma carta, uma única vez, dizendo que estava empregado em São Paulo.
Preta foi acordada pela mãe, esfregou os olhos, percebeu-se dentro do ônibus que estava parado, as pessoas iam descendo do carro, ela olhou pela janela e viu o pai lá fora, retirando as malas e trouxas de roupa. Chegaram em São Paulo. Ela acompanhou a mãe e a família se reuniu no chão ao lado do ônibus, pegaram as coisas e foram entraram no saguão da Estação Tietê. Aos poucos, os pequenos olhos negros de Preta foram se enchendo deslumbrados com tudo o que ela via: era o tamanho da rodoviária, a enorme quantidade de gente andando para lá e para cá, muitos ônibus chegando e saindo. E tanta gente gritando e falando, atordoando-a. A cabeça tentava entender tudo aquilo, enquanto a mãe a puxava pela mão, com medo de perdê-la, o pai, desorientado, primeiro perguntou a alguém como se saía dali, foi seguindo as indicações e a pequena menina teve medo mas entrou na escada rolante puxada pela mãe.
Andaram pela rodoviária, num balcão de informações, o pai tirou uma velha carta do bolso e procurou saber onde era aquele endereço, o local onde seu irmão estava trabalhando. A moça explicou-lhe pacientemente todas as etapas para chegar lá. E outra vez Preta teve medo de entrar no metrô, mas a mão forte da mãe a puxava e ela foi. Enquanto o trem ia pelo alto ela se admirava com o trânsito, depois engoliu um medo seco ao perceber-se dentro da terra. Desceram. Caminharam muito e estavam cansados, já era quase noite quando a família toda parou defronte a um prédio enorme, inacabado, onde não havia ninguém, com uma grande placa: FUTURAS INSTALAÇÕES DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Era aquele o endereço de onde o irmão mandara a última carta.
O local estava abandonado, os tapumes cercavam o prédio e não havia por onde entrar, bateram palmas, chamaram pelo irmão do Jadilson e ninguém os atendeu. Eles ficaram por lá, ajeitaram suas coisas na calçada, cozinharam um resto de feijão numa pequena panela, com água que pegaram numa casa próxima. O pai de Preta de Breu passou aquela noite matutando sobre o que fazer enquanto a mulher e os filhos dormiram de cansaço.
Jadilson passou a noite inteira acordado, pensando no que tinha feito. Viera da Bahia para tentar a sorte em São Paulo , confiara numa velha carta do irmão e agora não encontrava ninguém. Ouvira falar tanto da violência da cidade que não tinha coragem de dormir, estava com a mão na peixeira, bem guardada ao seu lado, se alguém aparecesse, haveria de reagir e defender a família.
Mas ninguém os incomodou naquela noite porque o medo dos paulistanos era maior. Só os carros passavam pela avenida. Até mesmo algum marginal que eventualmente os visse não teria vontade de lhes fazer qualquer maldade tamanho o infortúnio que enxergava quem estava de fora e via apenas uma família despojada de tudo a proteger-se do frio, enrolada em rotas roupas.
No dia seguinte, encontraram um homem que dormia no outro andar daquele prédio. Conversando, souberam que ele tinha trabalhado naquela obra, que nunca acabava, que todo mundo fora mandado embora sem receber nenhum direito, e que ele conhecera o irmão do pai da Preta de Breu, e que aquele tinha conseguido outro emprego numa outra obra lá na Amazônia.
Desiludido, o pai dela procurou emprego e não encontrou, com a ajuda do vizinho do andar de cima, começou a catar e vender papelão. Com o tempo, tudo se ajeitou e eles ficaram morando naquela obra inacabada.
Preta de Breu cresceu e se tornou uma rapariga magrela, muito alta e bonita e logo se envolveu com os meninos da rua que brincavam com os seus irmãos.
Uma assistente social da prefeitura passou por lá e cadastrou a família de Preta de Breu num programa chamado “Toda Criança na Escola” e ela começou a estudar, foi até a quinta série, aprendendo a ler e escrever alguma coisa e a contar. Aprendeu também que, na escola, para se dar bem e não ser morta pelos traficantes que a dominavam, tinha que ser muita esperta. Juntou-se a um grupo de meninos, que, por serem todos mais baixos do que ela, eram chamados de Sete Anões. Foi aí que começou a vida de poder do Grupo de Preta de Breu e os Sete Anões Traficantes.
Nunca houve naquele colégio grupo tão terrível quanto aquele. Dominaram o tráfico de drogas do local. Liderados por Preta de Breu, os Sete Anões Traficantes fizeram e aconteceram. Desde matar aluno que lhes devia no pátio da escola até explodir carro de professor que dava nota baixa. Era um grupo da pesada, traficavam, extorquiam, estupravam meninas que se tornavam desafetas de Preta de Breu, e olhe que todos tinham menos de dezoito anos. Um dia, um dos anões, o Punga, foi preso e levado para a FEBEM. Lá, ele armou uma rebelião e, com a ajuda dos outros anões e da Preta de Breu, conseguiu fugir, não sem antes matar um dos seus inimigos que estava preso com ele e o ajudara a armar a rebelião. Traição pura.
Nesta altura, Preta de Breu já havia fugido de casa e morava nas ruas com os anões, num vão de um viaduto em cima de uma favela. Mas uma noite, o Azarado aprontou com um PM barra pesada, que dava cobertura para um traficante da zona leste. Naquela noite mesmo, o esconderijo foi invadido, ninguém sabe se era por policiais ou por bandidos e todo mundo foi executado a tiros de metralhadora. Azarado, Punga, Metido, Colado, Lamacento, Borrado e Bostinha foram mortos a sangue frio numa das maiores chacinas da cidade naquele ano. Preta de Breu sobreviveu apesar dos quinze tiros que levara nas pernas, braço e abdome.
Como única testemunha do crime, acabou sendo protegida por uma Organização Não Governamental de Proteção aos Direitos Humanos que lutava contra crimes de policiais e ganhou abrigo, roupas, comida, estudo.
Até completar dezoito anos, ela viveu sob a guarda da ONG, sob os olhares cuidadosos do presidente da entidade, que, percebendo tal beleza, começou a tratá-la cada vez melhor com segundas intenções. Mal fez ela dezoito anos e ele, discretamente, numa noite, ficou até mais tarde no abrigo e entrou com Preta de Breu no quarto. Ela, que nada tinha de boba e já havia percebido há muito tempo as intenções do advogado, não se fez de rogada e se entregou aos prazeres sexuais, tornando-se amante dele.
E, nesta situação, ela foi convidada a participar de um desfile de modas promovido pela ONG em conjunto com uma loja chique da cidade. Pelo porte, pela magreza e pela beleza, Preta de Breu foi o destaque no desfile. Apenas copiando os jeitos e trejeitos das modelos que via na televisão, ela se passou muito bem por uma delas e, no mesmo dia do desfile, surgiu um convite feito por um dono de uma grande rede de lojas. Ela topou no ato, pois começaria a ganhar algum dinheiro com isto, mas, havia também um preço, a cama com o dono da loja. Problema que ela tirou de letra e ainda fez um nó naquele homem, tornando-o mais um dos seus dominados.
Em pouco tempo, Preta de Breu passou a ser uma das modelos mais bem pagas do país, cultuada até no exterior como a beleza negra que veio do novo mundo, a menina de rua que virou princesa, recebia cachês mais altos do que qualquer outra modelo nas passarelas de Paris, Milão, Nova Iorque e São Paulo.
Tornou-se a verdadeira rainha das passarelas e, fora delas, tornou-se a deusa negra dominadora de muitos homens que se rendiam ao seu encanto e se transformavam em seus escravos.
Mas numa noite, nos bastidores de um desfile de inverno em São Paulo , ela avistou aquele homem negro, alto e forte, que não lhe tirava os olhos, que se aproximou e lhe disse:
_ Bolachinha de chocolate, como você está linda!
Desde que ela saíra de Salvador, que ninguém mais a chamava de Bolachinha de Chocolate, aliás, só uma pessoa fazia isto para irritá-la: o irmão que sumira na vida. Então, ela se lembrou de uma forma complicada que tinha família. Ficou sem saber se abraçava ou se expulsava o irmão fugido.
_ O quê você quer, Josinaldo?
_ Vim buscar a minha parte, Pretinha! Agora você é rica e tem que ajudar os seus pobres irmãos, senão eu vou arruinar a sua carreira! Vou contar para toda a imprensa quem foi você de verdade, pensa que eu não sei? Chefinha dos Sete Anões! A sociedade vai adorar quando souber que você mandava matar e estuprar qualquer menina que arrumasse bronca com você.
Sem ter como escapar, ela lhe deu dinheiro uma vez, e depois outra e outra vez e ele passou a ir atrás dela sempre que lhe faltava dinheiro. Ela não se agüentava mais de raiva de ter que sustentar aquele vagabundo, pensava num meio de se livrar dele. Numa das festas a que ia com freqüência, encontrou uma “drag qüeen” maluca chamada Samara que, num determinado momento lhe confidenciou:
_ Preta, eu sou Josualdo, seu irmão.
_ Josualdo, eu tinha certeza de que você ia se tornar uma bicha muito louca!
Preta convidou o irmão para morar com ela no apartamento luxuoso que possuía. Os dois irmãos conversaram muito nos dias que se seguiram. Josualdo contou a Preta tudo o que lhe aconteceu e ela lhe contou toda a sua história, o Josualdo tomou suas dores e decidiram que o Josinaldo não podia mais fazer isso, pois, se insistisse, eles o denunciaram para o traficante de Salvador que queria matá-lo.
Quando o Josinaldo veio buscar mais dinheiro na casa da Preta de Breu, Josualdo o esperava e começou uma grande discussão em família. Os três irmãos brigaram feio e, quando Josualdo disse sobre contar ao traficante sobre o paradeiro de Josinaldo, este sacou um revólver e o apontou para aquele.
_ Você vai morrer agora sua franga desvairada!
Preta deu um grito de susto e pulou em cima do irmão que estava com a arma, que disparou e a acertou na barriga, Josualdo, que trazia sempre uma faca escondida e presa na coxa, aproveitou a deixa para esfaquear mortalmente o irmão, que ainda teve tempo de atirar mais uma vez e acertá-lo no peito. O silicone não foi capaz de protegê-lo. Todos morreram no apartamento.
A família foi localizada e recebeu uma herança de quase quinhentos mil reais que a Preta de Breu tinha amealhado nos desfiles e nos programas com ricaços. O advogado dela, aproveitando-se da ignorância daquela família, ficou com a outra metade da fortuna. Mesmo assim, graças àquela filha, o pai pôde, finalmente, voltar para a Bahia, indo para o interior, onde comprou uma fazenda e foi morar com a mulher e os filhos que ainda lhe restavam.