Finado



         Valdir pensava em qual seria a melhor forma da sua mulher encontrá-lo morto dentro de casa. Teria que chocá-la de maneira suficiente para que ela se sentisse a única culpada pelo seu suicídio. Morrer não bastava, havia de morrer e culpá-la para que até o resto da vida ela carregasse tal peso. Enforcar-se dentro de casa no meio da sala lhe parecia um modo ideal. Não deixaria bilhete e nenhuma explicação, nenhuma mensagem, nenhuma despedida para que a culpa fosse ainda mais forte por não lhe dizer qual era a razão de tudo. Ou deveria deixar um bilhete culpando-a?
         Ele não suportava mais carregar o fardo da vida nas suas costas, sentia-se só num casamento fracassado, não mais conversavam e, ultimamente, quando se dirigiam palavras era com aspereza e rudeza. Ele não conseguia mais ver nela a mulher com quem se casara, muita coisa mudou nos últimos anos, menos ele, que não sabia como dar um futuro aos filhos. Moravam de aluguel, o salário dela era muito superior ao dele, seu emprego de auxiliar num escritório do centro da cidade não lhe fornecia mais do que ganhava quando se casara, ela terminou a faculdade, especializou-se, ganhou novo cargo, novo salário, melhorou de situação, enquanto ele sacrificou estudo e carreira para dar-lhe esta condição. Valdir não se sentia reconhecido pelo esforço que fez e, agora, sentia-se cada vez mais humilhado pela esposa.
         E porque não dizer também que se sentia humilhado pela sociedade? Não conseguia dar um bom padrão de vida para a família, não conseguia nem pagar as despesas mensais com o carro! Não podia viajar para os lugares que os amigos iam, não tinha televisão de vinte e nove polegadas e nem telefone móvel com acesso à internete. Não tinha e nem podia ter as coisas que a sociedade lhe oferecia, carro novo, telefone, televisão, cartão de crédito, casa na praia e, mesmo considerando que a sua mulher ganhava um salário razoável, juntos eles apenas pagavam as despesas mensais, a escola e o convênio médico das crianças.
         Para quê insistir nesta vida se nada mudaria? Ele bem que pensara em tantas fórmulas para mudar de vida mas sempre lhe faltava o dinheiro para realizar o seu projeto de montar uma loja de peças para automóveis, pensava que teria que pagar aluguel, comprar estoque, empregados, tanta coisa! Era impossível realizar tal negócio dadas as dificuldades.
         _ Estou indo passar o feriado na casa da minha mãe, vou levar as crianças comigo, segunda-feira estarei de volta. Tchau.
         Estas foram as palavras da esposa na sexta-feira quando ele chegou do trabalho e ela já estava com tudo dentro do carro. Aguardava a sua chegada para lhe dar o comunicado e só, nada mais, nenhuma explicação extra, ele que se danasse pois a vida era assim.
         Pois bem, pensava, ela que vá passar o feriado onde quiser porque, quando voltar, verá apenas o meu corpo frio pendurado na sala. Já que a minha opinião não é importante, porque eu deveria continuar com ela?
Valdir queria sair de casa, fugir, largar tudo, sumir, mas não tinha para onde fugir. Não poderia pagar aluguel numa casa, nem alugar hotel, nem pedir abrigo na casa de um dos irmãos, há, isso não! Chegava viver o que vivia! Não iria humilhar-se a este ponto, mostrar para o mundo que era um fracassado! Ah, isso não! Era melhor morrer do que se rebaixar. Pedir ajuda para um irmão, a quem? Ao Valmir que se achava o bom, tinha carro do ano, casa na praia, vangloriava-se disso, já o Vladimir era modesto mas estava sempre bem com a mulher e as crianças, trabalhava e estudava, ela também, eles viajavam nas férias, iam para o Nordeste, para o Sul, contava muitas histórias destas viagens, parece que a empresa em que ele trabalhava ia mandá-lo para um curso no exterior. Nunca que o Valdir iria se rebaixar a pedir ajuda para um deles, nunca!
Abrir o gás e ir dormir era uma forma menos dolorida de morrer, era mais fácil também, não teria que pendurar uma corda e fazer um nó bem forte, não sentiria nenhuma dor. Sim, este jeito era mais interessante, poderia deixar um bilhete, melhor, escrever uma carta e mandá-la pelo correio, ela chegaria na segunda-feira quando ele já estivesse internado, uma longa carta culpando a mulher pelo fato, seria ainda mais cruel desta forma, muito mais cruel sem dúvida. Ela nunca reconhecia nele o esforço de trabalhar para ajudá-la e de ficar com as crianças para ela estudar quando ele poderia descansar, estas mesmas crianças que nunca lhe deixavam ver o programa que gostava. Era melhor morrer mesmo. Quando chegava em casa, as crianças estavam brigando enquanto uma babá mau humorada o esperava no portão e se despedia mal ele chegava. Não tinha tempo de tomar um banho, de descansar, sua mulher chegava depois dele e nem lhe preparava um jantar por mais simples que fosse. Não tinha sexo, nunca conseguira conquistar qualquer outra mulher que não aquela com quem se casara, não tinha mais carinho, nem diversão e nem alegria. O quê tinha?
Valdir não conseguia enxergar nada mais que lhe valesse a pena, nem mesmo um mísero sonho que lhe desse ânimo, a solidão que lhe tomava o retrocedia à infância, à adolescência, à juventude, que também lhe fora triste. Um estado depressivo que o envolveu e o consumiu, destruindo-o por completo.
Não tinha pena nem das crianças porque acreditava que era melhor que eles não tivessem um pai, do que ter um pai fracassado, um mau exemplo a guiar-lhes também para o fracasso. Um pai morto seria o melhor porque não lhes atrapalharia a vida.
Enfim, abriu o gás, dirigiu-se ao quarto e se deitou.
Acordou algumas horas depois com fortes dores de cabeça e percebeu, óbvio, que estava ainda vivo, muito vivo. Foi até a cozinha e percebeu que não havia gás no botijão e, se ele quisesse matar-se daquela maneira, teria que buscar mais gás e fechar todas as saídas de ar.
Percebeu no ar um cheiro horrível, sulfuroso, que lhe causava mal estar, ainda sentindo fortes dores de cabeça, caminhou até a sala e viu um homem feio, horroroso, horripilante, pequeno, quase um esqueleto. Valdir assustou-se com tal presença, mas gritou com a postura de quem defende sua casa:
_ Quem é você? O quê está fazendo aqui na minha casa? Saia já daqui.
O pequeno humano olhou-lhe de uma maneira incomum e sorriu-lhe de maneira sarcástica, dizendo-lhe com cinismo:
_ Você já ouviu falar em fada madrinha e em Papai Noel?
_ Quê isso, estas coisas não existem, você é ladrão?
_ Pois é, eu sou o contrário, eu sou aquele que veio lhe trazer o inferno, vim acabar de vez com a sua vida!
E o homenzinho riu de uma forma que congelou o cóccix do Valdir e o envolveu em tanto medo que ele quase soltou o conteúdo dos intestinos nas calças, de bem moreno, Valdir ficou lívido com a presença de tão horripilante ser em sua casa. Mesmo assim, criou coragem, considerou a diferença de tamanho e resolveu expulsar aquele intruso.
_ Eu vou tirar você da minha casa no tapa!
Mas o homenzinho estava preparado, puxou um revólver e apontou para o Valdir.
_ Se você quer morrer, pode ser agora, uma morte que não será um suicídio, é muito melhor para a sua família encontrá-lo morto. Vão pensar que foi um assalto ou outra coisa e o seu plano vai por água abaixo.
Valdir parou, o homenzinho estava certo.
_ O quê você quer de mim?
_ Quero a sua alma, vim buscar a sua essência, levá-lo ao inferno!
_ Você é o demônio?
_ Não. Já lhe disse, só vim lhe trazer o inferno.
_ Eu morri?
_ Ainda não, está vivo para ser afundado ainda mais na sua própria merda, você não presta, Valdir, é uma merda, um zero à esquerda, sua vida não vale nada e é por isso que você merece o inferno mais do que os outros.
O homenzinho o levou até a televisão, que se ligou sozinha.
_ Conhece este lugar na tevê, Valdir?
_ Claro, é o escritório onde trabalho.
E, de repente, Valdir viu-se sentado em sua mesa em que digitava dados no computador, via seu chefe e seus colegas de trabalho rindo e se divertindo enquanto ele estava apinhado de trabalho. Tentava parar mas não conseguia, seus braços e suas pernas não lhe obedeciam, apenas digitavam papéis. Ele via o calendário mudar, via seu chefe envelhecer e continuar rindo com os colegas de trabalho, mas estes mudavam, os de alguns anos saíam, outros mais novos entravam e ele continuava digitando papéis e vendo o calendário mudar e as pessoas passavam por ele, que continuava sempre igual, até que alguém passou com um espelho na mão e ele se viu refletido por alguns segundos, estava envelhecido, com uma cara de mau humorado e ranzinza, magro e acabado. Valdir sentiu uma grande dor na cabeça e as suas vistas começaram a turvar, neste momento, viu aquela figura rindo da sua desgraça e lhe dizendo:
_ Não se desespere ainda, tem mais!
E o Valdir se viu em outro lugar, estava numa fila enorme, tinha alguns papéis na mão, reconheceu a repartição da prefeitura municipal, não entendia porque ele estava ali, resolveu ir embora mas ele não conseguia ultrapassar a porta de saída, era como se houvesse uma barreira que o impedia, ele gritava, tentou quebrar o vidro, pular a janela, mas nada adiantava, tinha que ficar dentro do prédio, as pessoas iam e vinham e ninguém o notava. Ele sentou-se no chão decidido a não fazer mais nada, mas o chão começou a queimar e ele se levantou, sentou, o chão queimou e ele se levantou, sentou, queimou, levantou, entendeu que não teria onde descansar, leu os papéis, era um processo qualquer, junto, um aviso: “RESOLVA PARA SAIR DAQUI”.
Ele entendeu que teria que resolver aquele processo. Voltou para a fila inicial que andava muito lentamente, Valdir estava desesperado, só sairia daquele inferno se resolvesse o processo, não podia parar para descansar que tudo lhe queimava, os pés, a bunda, as costas, fazendo com que sentisse muita dor.
A fila era muito lenta, quando chegou a sua vez, a mulher do guichê lhe disse.
_ Hora do meu café, aguarde que outra moça já vem.
_ Não é possível, há mais de três horas que estou nesta fila e, na minha vez você pára para tomar café, eu quero ser atendido, tenho que resolver isto com urgência!
A mulher nem lhe deu bola, foi tomar o seu café. Valdir a via na outra sala rindo com seus colegas de profissão, comiam bolachas e conversavam muito. Realmente, quinze minutos depois, chegou a outra moça, examinou o papel do Valdir e o mandou para o guichê 9.
_ Não é possível! Guichê 9?
_ Só lá se resolve este assunto.
E do guichê 9, Valdir foi para o quarto andar sala 2, depois terceiro andar, sala 7, depois para o subsolo sala 5. Ele gritava para todos:
_ É o inferno, isto aqui é o inferno, não é possível!
E o dia inteiro ele passou de sala em sala, falou com diversas pessoas e ninguém resolvia o seu problema, cada um dizia uma coisa diferente, Valdir argumentava:
_ Mas a lei não é uma só? Faça de acordo com a lei.
E cada um fazia e o mandava para outra sala e pedia outro formulário que era retirado em outro lugar e ele já estava enlouquecido e desesperado com tanta burocracia quando um funcionário pegou o papel que ele trazia na mão e lhe disse:
_ De quem é esta assinatura aqui no verso?
Valdir olhou a assinatura.
_ É minha! É minha mesmo!
O homem pediu-lhe o RG, conferiu os dados, depois carimbou a folha e lhe disse.
_ Pronto! Tudo certo! Resolvido!
Depois de um redemoinho, Valdir viu-se novamente na frente do ser.
_ Você se saiu muito bem, Valdir! O último que mandei fazer isto levou dois meses!
_ Por quê você não me mata duma vez? É isso que eu quero, quero morrer!
_ É muito fácil matar, Valdir, mas torturar é muito mais gostoso, você ainda pensa que a sua vida é ruim? Não viu nada ainda!
Valdir encontrou-se em outra fila, era de madrugada, ele tossia e uma dor ardia no seu peito, olhou para o final da fila e percebeu que estava próximo a um posto de saúde. Pensou que estava ficando louco e, novamente, tentou ir embora, mas os pés não lhe obedeciam, ficou na fila horas e horas em pé, tossindo, sentindo o peito arder e com frio. Às sete horas da manhã, o posto abriu e uma enfermeira veio distribuindo senhas a partir do começo. Quando ele foi finalmente atendido, não havia vaga para o clínico geral e ele recebeu outra senha dizendo para comparecer depois de trinta dias.
_ Trinta dias, já estarei morto até lá, meu peito dói, minhas pernas não me agüentam, preciso ser atendido agora!
_ Todo mundo precisa, senhor, se quiser, pode procurar o hospital público.
Valdir saiu e quis desistir de tudo, atirou-se na frente do primeiro caminhão, mas este passou por ele como se fosse de vento. O homenzinho lhe apareceu:
_ Vá se curar, Valdir, para sair do inferno, só com boa saúde!
_ Seu burro! Vou deixar que esta doença me mate, saio morto daqui, mas saio!
_ E quem disse que você vai morrer? Esta doença vai lhe consumir, causar-lhe dores terríveis mas não vai matá-lo, você terá a eternidade toda para sentir estas dores terríveis, a menos que queira curar-se!
Realmente, Valdir começou a sentir as dores internas como se fossem cólicas fortes, eram insuportáveis, mal conseguia mover-se.
_ Então este é o meu inferno! Vou passar a eternidade sentindo estas dores!
_ A escolha é sua! Vá curar-se se puder!
E desapareceu.
Valdir sentia aquelas dores fortes e sabia que não iria morrer daquilo, mas não poderia conviver com tais dores, a eternidade sofrendo daquele jeito! Tentaria curar-se, foi até um ponto de ônibus e pegou a condução que o levaria ao hospital, mas, no meio do caminho, houve uma chuva muito forte que alagou a avenida e o ônibus parou, uma hora, duas, as dores insuportáveis e o veículo não saía do lugar.
“Eu só posso ter morrido, estou no inferno”, pensava. O veículo seguia um pouco, parava. Pela janela, via-se a fileira infindável de veículos presos no congestionamento, não havia como acelerar o processo, as dores terríveis. Após muito tempo, ele conseguiu descer no ponto em frente ao hospital público, caminhou com dificuldade e entrou no pronto socorro.
Uma atendente cansada e com olheiras tentava ajudar a todos que chegavam, chamava enfermeiros e médicos, pedia calma, preenchia as fichas com os mais diversos tipos de acidentados aparecendo. Valdir entrou numa fila de estropiados e aguardou.
Uma hora depois, conseguiu preencher a sua ficha e esperou mais meia hora até que o médico o atendeu, este apenas o olhou, perguntou o que ele sentia.
_ Dores fortes, doutor, aqui na barriga.
Depois o médico rabiscou um papel e lhe deu a receita.
_ Este remédio vai melhorar.
Valdir pegou o papel e procurou uma farmácia, o remédio era muito caro, não poderia comprá-lo com o resto de dinheiro que tinha, o farmacêutico lhe indicou o ambulatório público que distribuía remédios gratuitamente. Mas lá não tinha o remédio, chegaria em dois dias.
E depois de dois dias, dormindo ao relento porque o ser o impedira de voltar para casa, passando fome, ele voltou e conseguiu o remédio que praticamente não lhe ajudou nada. Valdir retornou ao hospital, fez nova consulta, pegou novos remédios e nada. Um mês indo e voltando, até que alguém resolveu marcar-lhe alguns exames, mais um mês até que os realizasse, mais dificuldades, menos soluções, fome, dores insuportáveis. “Eu vou passar a minha eternidade neste inferno, ninguém poderá curar-me, eu suicidei, só pode ser por isso, é o meu castigo”, pensava.
Até que depois de muito tempo, o ser lhe apareceu:
_ Então, Valdir, conseguiu alguma coisa?
_ Maldito, você me jogou neste inferno, maldito!
_ Você quis o inferno, Valdir, você quis se matar.
_ Eu não agüento mais este sofrimento, por favor, tire-me daqui, acabe com isso, faça alguma coisa!
_ Ora, Valdir, você só consegue pensar em você, o quê é o seu sofrimento? Nada, até o momento, você não quis saber nem um pouco como estão as coisas na sua casa!
_ Ora, minha casa, eu já estou morto!
_ Você precisa sofrer um pouco mais, Valdir, seu inferno ainda está muito bom!
_ Sofrer mais? Você é doido! Se estou vivo, mate-me e acabe de vez...
_ Quem disse que você está vivo?
_ Você!
_ Pense o quê quiser, você nunca saberá se está vivo ou morto, para mim, é uma delícia fazer isso com pessoas tão egoístas quanto você, tão inúteis e ridículas.
_ Eu fui tão humilhado na minha vida, porque continuar com isto?
_ Você acha que foi humilhado?
E o ser desapareceu novamente. Valdir ficou sozinho, aquela altura era um farrapo humano, alguém que conseguia pensar apenas nas dores imensas que sentia na barriga, até que um carro de polícia parou ao seu lado. Dois soldados saíram:
_ É este o cara!
Eles o pegaram e o puseram dentro da viatura.
Alguns quilômetros depois, num terreno baldio da periferia, o tiraram da viatura e o jogaram no chão, as dores continuavam.
_ O quê vocês estão fazendo comigo? O quê está acontecendo!
_ Fica quieto meliante!
E o Valdir apanhou durante alguns minutos, depois foi jogado de volta para o camburão e o levaram para a cadeia, foi trancado numa cela com mais vinte e três homens sujos, mau encarados, bandidos. Valdir gritava o tempo todo.
_ Vocês estão loucos, eu não fiz nada, soltem-me, não podem me prender!
Até que um dos presos levantou-se e gritou para os outros.
_ Aí pessoal, este aí é o vinte e quatro, vai ter festa hoje!
Valdir não entendeu. Os presos olharam para ele.
_ O quê foi? Por favor, me matem, por favor!
_ Que matar o quê, cara, é festa, abaixa as calças aí, meu!
_ O quê?
_ O cara não quer dar a festa!
_ Que isso? Vocês estão loucos? Eu não sou veado, não!
_ Então vai ser boiola!
Outros presos agarraram o Valdir e retiraram a sua calça, seguraram as suas pernas abertas e aquele que parecia ser o chefe deles aproximou-se. Penetrou-o.
Mais vinte e dois presos fizeram o mesmo, um atrás do outro, uns urravam, outros faziam em silêncio, mas nenhum deixou de fazê-lo. Ao fim de tais atos, restava um Valdir ainda mais do que humilhado, com o ânus doendo e sangrando, caído no chão frio da cela, chorando de tanta dor e humilhação. Se ele estava morto porque sofria daquele jeito? E se ainda estava vivo, o quê aconteceu com todas as pessoas que ele conhecia? Não haveria ninguém que pudesse tirá-lo daquela situação?
No dia seguinte o carcereiro veio retirar o Valdir da cela, mau podia andar de tanta dor, ele olhou e viu, era aquele demônio que viera buscá-lo:
 _ Gostou da festa?
Valdir pulou em cima dele com raiva mas ele sumiu e apareceu do lado. Não era possível agarrá-lo. Depois deste último momento de raiva, acabaram-se quaisquer forças que pudesse ter para continuar sentindo vontade de viver, mais do que nunca, ele queria o suicídio, não havia mais nenhuma perspectiva de vida dentro daquela alma.
_ O quê você quer de mim, demônio?
_ Sua alma, Valdir, sua alma para eu continuar a destruí-lo, dá-me prazer destruí-lo pela eternidade. Mas eu vou dar-lhe uma chance, talvez você compreenda porque passa por tanto sofrimento.
_ O quê acontece comigo? Estou morto?
_ Está e não está ainda. Seu corpo deve estar em outro lugar mas a sua alma é eterna, parece que você andou faltando nas aulas do catecismo! Esqueceu que a alma é eterna?
_ Então este é o meu destino após o suicídio, viver no inferno por toda a eternidade, sofrendo todas estas dores e humilhações, como você é ruim. O quê mais você quer de mim, maldito!
_ Quero aumentar o seu sofrimento, alguém como você merece sofrer por toda a eternidade!
O ser levou o Valdir até um viaduto, era noite e uma linda jovem estava prostrada na beirada. Vinte metros abaixo passava uma avenida movimentada.
_ O quê ela vai fazer?- perguntou Valdir para o Capo.
_ Matar-se, em breve irá pular do viaduto.
Nisto, não sabendo de onde e nem porquê, Valdir tirou forças e correu até a menina, tentou segurá-la, mas as suas mãos a atravessaram, ele era uma alma, não podia salvá-la.
_ Você não pode salvá-la assim, Valdir! Veja que linda morte, um salto, um vôo e um baque contra o asfalto lá embaixo, pastel de adolescente, mais uma alma para mim, adoro quando são almas jovens, sofrem mais, eu me alimento deste sofrimento, sinto prazer em vê-las na pior.
_ Mas você pode impedi-la!
_ Posso! Mas para quê? Se não for hoje, será amanhã! Para quê impedi-la?
_ Maldito, como ela pode chegar nisto, tão jovem! – Valdir sentiu pena da menina.
_ Ora, estou surpreso que me faça esta pergunta! É tão fácil chegar neste ponto, vamos conhecer a família dela, quem sabe você possa entender porque estas coisas acontecem. Vamos conhecer o irmão dela!
O ser levou Valdir para um bairro afastado na periferia. Numa rua sem iluminação pública de terra batida mostrou-lhe um rapaz que queimava uma pedra de craque revirando os olhos nas órbitas com a droga.
_ Que situação deplorável, onde as drogas levam às pessoas, um rapaz tão novo!
_ Ora, Valdir, drogas levam a isso e a coisas piores, estou esperando esta alma faz tempo, mas dizem que vaso ruim não quebra!
Ao ouvir a sirene de um carro de polícia, o rapaz escondeu-se atrás de umas tábuas, o veículo passou. Ainda atordoado, o rapaz levantou-se e caminhou alguns metros até chegar no asfalto, viu um casal de namorados num carro, sacou um revólver e foi até lá. Quando chegou no veículo, tentou abrir a porta do motorista, não conseguindo, atirou no vidro, assustando o casal e atingindo o homem no pulso, abriu a porta à força e mandou que eles saíssem.
_ O quê ele está fazendo? Será que não tem ninguém para impedi-lo?
_ Só tem você, Valdir, tente!
Valdir realmente tentou mas suas mãos não podiam segurar ninguém, ele não podia interferir naquele momento. O rapaz mandou a menina tirar a roupa, ela se recusava, ele deu um tiro próximo ao pé dela, ela se despiu, depois mandou que ela amarrasse o homem bem forte com as roupas, após isso, certo de que não haveria reação, estuprou-a.
Roubou-lhes o dinheiro que tinham e saiu com o carro roubado, tomando o cuidado de amarrar a moça nua a um poste. Valdir não conseguia compreender tamanha violência. Só entendia que era a droga que levava o rapaz a tais atos.
Eles acompanhavam o carro. O rapaz parou quando viu uma mulher na rua. Saiu do carro e anunciou o assalto. Nervosa, ela não conseguia pegar o dinheiro na bolsa, ele atirou no peito e roubou a bolsa deixando-a agonizante na calçada.
O ser dizia:
_ Coitada, tem um filhinho para cuidar, é mãe solteira, o namorado a abandonou, acho que o filho dela vai para uma creche, por causa de quê? De dez reais que ela possuía mas que não encontrava na bolsa!
_ Dez reais? Toda esta violência por causa disso? Eu não acredito, por quê você faz isto comigo?
Valdir sentia mais dor ao ver o rapaz provocando tanto sofrimento nas outras pessoas do que quando peregrinava pela prefeitura, pelo serviço público de saúde ou pela prisão. A incompreensão daquelas cenas, aquela dor que se espalhava, impedia-o de sentir as próprias cólicas que o ser lhe introduzira e de sentir a dor sofrida com os presos da cela.
_ Não posso entender, como alguém chega a este ponto?
_ Ah, não pode, Valdir, então, que tal conhecer a irmã mais nova destes dois?
E o Capo levou-os a uma velha casa onde uma velha senhora costurava algumas roupas, tentando levantar um dinheiro para sustentar a si mesma e a uma criança de sete anos que fazia as primeiras lições escolares.
_ Ela tem esta senhora que cuida dela! – disse o Valdir.
_ Por pouco tempo, dentro de um ano esta velha, que é avó dela, irá morrer e a menina vai para um orfanato porque o pai dela já morreu e mãe não tem condições de cuidar dela. No orfanato algumas coisas irão acontecer-lhe, mas você não precisa saber disso agora.
_ A mãe, é isto, onde está a mãe destas crianças?
_ Que bom que você se interessou, vamos conhecê-la.
E o ser levou o Valdir para um sanatório mental. Os internos eram tratados como lixo humano à espera da morte, não havia condições dignas de vida lá. Doentes mentais, senis, drogados, uma mistura de pessoas convivendo com roupas sujas, ratos e baratas na hora de dormir, comida mau feita, doenças.
_ Onde está a mãe daquelas crianças?
_ Você irá encontrá-la.
Entre os internos, Valdir reconheceu a sua mulher perambulando como louca pela sanatório, era a primeira vez que conhecia um rosto desde que vira o ser.
_ É Ana, minha mulher, o quê ela faz aqui?
_ Você sabe a resposta, ela é a mãe daquelas crianças!
Ele ficou chocado com a revelação.
_ Meus filhos, não podem ser meus filhos! Minha filha vai pular do viaduto, eu preciso salvá-la!
Valdir correu para fora do sanatório, as cólicas e a dor no coração de ver tanta desgraça o destruíam, ele queria chegar naquele viaduto, naquela ponte, de algum jeito tinha que salvar a sua filha, ele corria, mas não sabia para onde ir, as dores ficaram mais fortes e ele caiu no chão, contorcia-se, não conseguia caminhar, ao seu lado, o ser ria com sarcasmo. Valdir olhava-o e gritava.
_ Maldito, você é o demônio, é o inferno.
_ Você quer ver sua filha pular, vou atendê-lo!
E o Capo levou-o até o viaduto novamente. Valdir correu para tentar salvar sua filha mas as suas mãos atravessavam o corpo dela, ele não podia fazer nada! Valdir encostou-se na amurada e chorou copiosamente, sabia que, a qualquer instante, veria sua filha caindo e se espatifando no chão.
Naquele momento, um carro veio aproximando-se em alta velocidade perseguido por policiais que atiravam, Valdir virou-se. Ao entrar no viaduto, o motorista perdeu o controle e foi na direção da filha dele, Valdir gritou:
_ Não! Ele vai bater, vai jogá-la lá embaixo!
Não houve tempo para nada, Valdir viu que o motorista era o seu filho, o carro bateu na amurada e carregou a moça junto, como um filme em câmara lenta, viu-os caindo do viaduto, bateram no asfalto, o carro explodiu e se incendiou, os dois morreram.
Depois, Valdir viu as almas dos filhos se levantando. O ser comentou:
_ Seu filho ainda salvou a sua filha de mim, mas ele não me escapará.
Depois, os filhos do Valdir passaram, ele gritou para que ouvissem mas não o viram e nem responderam.
_ Ora Valdir, se eu deixasse você falar com eles, seu inferno não seria ruim, eles não podem nem vê-lo e nem ouvi-lo, aí mora o sua maior dor. E o pior, você vai ver o sofrimento do seu filho nas minhas mãos, sabe o que você passou, não é nada perto do que ele vai sofrer comigo.
Valdir estava atônito com o fato e uma dor maior o consumiu, ele carregaria tais mortes pela eternidade como castigo por sua insanidade, sentia que tudo o que ele passara não era nada perto do que acabara de ver. O sofrimento eterno vinha de tais dores, oriundas de seus próprios atos. Valdir lembrou-se que aquele era o futuro e perguntou ao ser.
_ Nós estamos no futuro, diga-me, como foi que eu morri?
_ Enforcou-se.
_ Não foi com o gás?
_ Não. O gás acabou, você subiu no telhado, amarrou uma corda, passou-a pelo buraco da lâmpada da sala. Isto foi há cinco anos atrás. Seu filho mais velho o encontrou pendurado na sala, sua mulher correu quando ouviu os gritos após chegar da viagem até a casa da mãe, ao vê-lo, enlouqueceu na hora, saiu gritando histérica pela rua, perdeu o emprego, perdeu os filhos, perdeu tudo, ela o amava, inclusive você. Sua filha mais velha ficou dias em estado de choque, sua menor, com dois anos na época,  perguntou por mais de um ano pelo pai. Seus filhos ficaram com a sua sogra que já era idosa e vivia com dificuldades.
_ Então, eu sou o culpado de tudo!
_ Sim, aqui é o inferno. Seus pecados se perpetuam pela eternidade, Valdir. São seus erros que levaram os seus filhos a isto, não é assim que você quis? Seus pecados continuam existindo mesmo depois da sua morte, você pode não sentir, mas seus erros foram sentidos pelos seus filhos e serão pelos seus netos, você ainda tem uma filha que também irá sofrer. Que terão netos, que irão sofrer porque ela carregará estas dores no peito.
E o ser deu aquela risada sarcástica que ecoou por toda a cidade e por todos os lugares. Reunindo forças, Valdir lançou-se ainda numa tentativa inútil sobre o ser, queria matá-lo, mas ele também começou a apertar o pescoço do Valdir, que se viu na sala da sua casa, estava pendurado com a corda no pescoço, o ar lhe faltava, a vista se apagava, a vida se esvaía. Valdir segurou a corda com as mãos, havia uma réstia de vida e uma vontade inexplicável e inigualável de viver tomou conta dele, precisava viver, ele sabia que precisava viver! Precisava viver!
Seus pés agitavam-se tentando apoiar em algum lugar, Valdir debatia-se e atingia a parede e a estante, mas as forças estavam acabando, o ar nos pulmões se extinguia, o pescoço estava apertado e ele estava sufocado, de repente, de tanto debater-se, a corda arrebentou e Valdir foi ao chão. Conseguiu livrar o pescoço e respirar.
Ficou deitado no chão da sala, olhando para a corda arrebentada que saía pelo buraco da lâmpada, o dia foi acabando e a escuridão da noite foi tomando conta do ambiente. Ele pensava em tudo aquilo, teria sido verdade? Parecia sentir dores abdominais e anais, lembrando-se com repugnância daquele momento. Talvez tudo tivesse sido um sonho, talvez fosse verdade, talvez já estivesse morto!
Mais de uma hora no escuro, então, ele conseguiu reunir forças e se levantar, saiu da sala, acendeu uma lâmpada, olhou o relógio de parede, oito horas da noite, foi até a cozinha, o gás estava aberto mas não havia cheiro algum, olhou a data no jornal, ainda era o mesmo dia.
O telefone tocou. Valdir hesitava atendê-lo. Após o sexto toque da campainha, retirou-o do gancho.
_ Alô! – disse com cautela e apreensão.
_ Valdir, aqui é a Ana! – Valdir ouviu a voz da sua esposa e o barulho dos gritos das crianças ao fundo, todos querendo falar com o pai.
_ Ana! Que bom!
_ Aconteceu alguma coisa?
_ Aconteceu, eu... eu... bem... estou com saudades de você e das crianças!
_ Amanhã eu volto. Vim ver minha mãe.