ESPELEÓLOGO

     Ao tentar se apoiar na rocha, Mário deu um passo errado e escorregou. Pouca coisa, mas o suficiente para cair numa superfície fina de terra que cedeu, derrubando-o em uma outra câmara, que a lanterna do seu capacete iluminou um ponto da caverna totalmente desconhecido, e que talvez ficasse assim se ele mantivesse a rota que traçara na pesquisa daquela caverna imensa e ainda não mapeada no fundo de uma das poucas regiões esquecidas da Serra da Mantiqueira.
     A luz mostrou formas diferentes de colunas que curiosamente pareciam arcos, melhor ainda, pareciam raízes que se entrelaçavam como se formassem uma rede. A parte mais interessante era a coloração que estas raízes de pedra assumiam, variando do azul ao verde.
     Mário evitou tocar naquelas formações e continuou expandindo a corda guia que trouxera, possuía ainda mais trezentos metros de guia e estava seguro quanto a isso mas precisava arrumar um meio de continuar explorando aquele lado da caverna pois via no fundo do salão uma luminosidade curiosa. Acabou por descobrir um meio de contornar a formação radicular que lhe custou bem mais de cinquenta metros de corda guia mas, de alguma forma estava dentro do salão e poderia dirigir-se até aquela pequena abertura luminosa que o atraía. E estando numa caverna, pensou que poderia ser um reflexo de algum mineral metálico mas, ao virar a sua lanterna para o lado, percebeu que a luz continuava aparecendo e entendeu que era uma fonte de luz própria, algo totalmente surreal dentro de uma caverna.
     Ao chegar no buraco, fonte daquela luz, conseguiu observar que era um salão luminoso, mas a abertura era muito estreita para ele passar e começou a se arrastar entre as pedras até que escorregou e caiu apenas um metro e meio abaixo e tocou num chão de azulejos.
     Ao se levantar, percebeu que estava dentro de uma casa, mais especificamente na cozinha da casa e reconheceu imediatamente o chão do piso de sua própria casa de infância, viu a velha porta de madeira que separava a casa do quintal, a mesa e as cadeiras altas de estofado vermelho, o velho fogão e a geladeira azul antiga de uma porta apenas, aproximou-se dos móveis, incrédulo, e os tocou e sentiu a realidade daquelas coisas. Ele estava mesmo dentro da cozinha da casa da sua infância e pela luminosidade da janela, percebeu que o dia estava amanhecendo, olhou no velho relógio de parede e ainda eram cinco e meia da manhã e sabia que a mãe se levantaria às seis da manhã para começar as atividades do dia.
     Ele estava amarrado ainda à corda guia e usava o capacete de espeleólogo mas, tomado pela surpresa de estar em sua casa de infância como se em algum momento, aquela casa houvesse sido trazida para o fundo da terra e mantida assim por alguma força estranha. Caminhou até o seu antigo quarto e tudo estava no lugar como deveria ser, inclusive, ele e seus irmãos dormiam nos beliches, e todos eram crianças e pode vê-los e a si mesmo e uma saudade imensa tomou-lhe o coração daquele tempo. Quanto ele deveria ter ali, sete anos, oito anos? Ele e seus irmãos dormiam ou estavam todos congelados no tempo, viu as roupas largadas no chão como eles costumavam fazer, reviu os velhos gibis antigos que gostava de ler e se lembrou daqueles tempos de criança, das brincadeiras, viu seus brinquedos que adorava tanto.
     Saiu do quarto e andou pelo corredor da da casa, viu na sala a velha televisão e a velha estante de livros com todos aqueles livros que ele leu. Sentou-se no sofá, deitou-se no tapete, depois saiu e teve vontade de ver sua mãe e seu pai mas não tinha coragem de ir até o quarto deles. Ele nunca entrou no quarto dos pais depois que eles fechavam a porta mas, agora, em que tudo parecia congelado no tempo, ele tomou coragem e foi até lá, abriu a porta silenciosamente e entrou, viu seu pai e sua mãe dormindo, jovens ainda, imaginou-os com o seu amor e as suas dificuldades, agora adulto, sabia como era difícil o relacionamento entre duas pessoas e pensou no quanto sofreram para criar os filhos, quanto não sabiam, assim como ele, que teve de aprender tudo, viu sua mãe e percebeu o quanto ela era bonita e lembrou-se dela agora idosa com a sua dificuldade de se locomover. e quis mesmo, fortemente, receber um beijo da sua mãe, um abraço do seu pai, quis mesmo brincar com seus irmãos, mas tudo estava ali, congelado no tempo, num espaço improvável, em que ele se encontrava de maneira surreal.
     Saiu do quarto dos pais chorando e passou pelo quarto das suas irmãs e as viu dormindo também. Sentiu vontade de protegê-las, lembrando do quanto brigou com elas em vez de cuidar delas, sentia tanto amor e tanto remorso ao mesmo tempo, tanto deslumbramento e felicidade de estar ali e ao mesmo tempo tanta dor de não poder estar mais ali naquele tempo em que tudo era apenas a felicidade.
     Voltou até a cozinha e o buraco por onde entrara continuava ali. Foi até a porta de madeira para abrir e ver se o quintal era o mesmo, ao abrir a porta, uma luz muito forte o impedia de enxergar, era uma claridade maior que o dia, uma luz intensamente clara e branca. Não pôde abrir aquela porta, não pôde seguir em frente por ali, até que ouviu o rádio que trazia tocar um bip e viu a mensagem do seu colega de expedição que estava lá no alto pedindo para ele voltar.
     Não queria voltar mas retornou pelo mesmo buraco por onde entrou e subiu com alguma dificuldade retornando à luz e reencontrando o seu colega. Não lhe contou nada do que vira porque sabia que ele não acreditaria e pensaria que ele teve uma alucinação.
     _ Mário, eu fiquei acompanhando aqui pelo radar e pelo gps e você ficou mais de uma hora parado no mesmo lugar lá embaixo, pensei que tivesse sofrido um soterramento, mandei várias mensagens e você não viu nada, o que aconteceu?
     _ Nada, meu amigo. Apenas encontrei um lugar que pude parar um pouco e admirar a petrificação do tempo, do espaço, da memória e do coração.
     _ Deu para fazer poesia agora?
     _ Sim, poesia, só agora percebi o quanto esta poesia é necessária.




27/03/2019