O País dos Gérsons

                                                                                                                
Eu estava numa festa, numa enorme mansão de propriedade de um artista muito rico, que ganhou a sua fortuna com um programa de televisão ridículo da ridícula rede plim-plim, mas que era adorado pela audiência e vendia de tudo. Eu ainda não compreendia como eu cheguei ali, já que eu não era artista, não era da televisão, não conhecia o anfitrião e nenhuma daquelas pessoas, à exceção, claro, da minha namorada e de seu amigo, que tinha um amigo, cujo primo fora convidado para a festa e nos levou junto. Entramos meio de bicudos, mas estávamos lá, sentados à mesa, ouvindo um som muito alto de um grupo de rock ao vivo, onde, simplesmente, não era possível falar com as pessoas ao lado, portanto, apenas ouvíamos a música, comíamos e bebíamos.
Os convidados dançavam freneticamente possuídos pelos demônios modernos e pelo ecstasy. Muitos possuíam tatuagens, outros usavam perucas de cores berrantes, mulheres com roupas estranhas, algumas muito masculinizadas enquanto alguns homens estavam muito doidos, parecendo extremamente alcoolizados. E muitos e muitos homossexuais se beijavam para todos verem.
Tudo isto à beira de uma piscina, entre mesas finamente decoradas com adornos de frutas e flores, cristais, cartãozinho de buffet. As cadeiras vestidas de panos brancos até o chão.
Eu fui até o bar buscar um suco de abacaxi.
            Olhei para a piscina semi-olímpica, de ampla área em seu entorno rodeada de mesas e cadeiras. Do lado oposto ao bar, a banda tocava as suas músicas sem parar, quando o vocalista oficial cansava a voz, um companheiro começava, depois, o oficial retornava. Um malabarista fazia sua exibição e um mágico circulava divertindo os convidados. Garotas suspeitas em trajes provocantes circulavam, lançando olhares às carteiras recheadas dos seus acompanhantes. Percebi pessoas consumindo todo tipo de drogas, lícitas e ilícitas, mas eu me encontrava sóbrio, pois não era destes que precisam de alguma droga para divertir-se.
E manter-me sóbrio, salvar-me-ia de muitas situações vexatórias.
            No entanto, ali eu estava a procurar alguns bons contatos no meio desta gente tão rica e cheia de fingimento. Eu queria encontrar alguém que não estivesse arrotando caviar depois de comer salsicha, a grande maioria, tipo típico, que freqüenta este tipo de festa de artistas. Eu garimpava alguém que pudesse alavancar alguns projetos importantes e me permitir galgar degraus da escala social. Mas as aparências me enganavam. No entanto, foi ali, na beira da mesa do bar que vi uma massa disforme pequena, parecia um pedaço de carne que se mexia, sem olhos, sem boca, sem corpo, apenas um pedaço pequeno de carne vermelha que se mexia. Eu tentava entender o que era aquilo e não conseguia compreender, peguei uma faca para espetar o estranho ser do tamanho de um ovo cozido quando ouvi gritos vindo da beira da piscina.
            Do fundo de um quarto, surgiu um rapaz alto, bem alto, bêbado, extremamente bêbado, que gritava com as pessoas, dizendo que iria matar a ex-namorada porque ela o deixara, e também mataria o atual namorado dela. Esse rapaz era artista também, e algumas pessoas tentavam acalmá-lo quando ele sacou um revólver da cintura, todos ficaram com medo, pois ele apontava sem direção para todos e para ninguém ao mesmo tempo, qualquer um poderia ser alvo de um eventual tiro.
            A situação tornou-se muito tensa ao redor do rapaz e eu imaginei que fosse apenas um simples acesso de fúria de um ex-corno, desejoso de cometer um crime passional para limpar a sua alma e sua honra com o sangue da mulher amada e depois passar o resto da vida se explicando na polícia, talvez preso, talvez fugindo, como forma de dar um sentido à sua vida ridícula. Coisa banal, violência gratuita, que costuma acabar em morte, nada com que a gente não se espante no Brasil.
Mas quando retornei do bar, percebi a gravidade da situação ao me aproximar da mesa onde se encontrava a minha namorada, eu ainda estava de pé e olhei para o bêbado, quando o vi apontando firmemente a arma na direção dela e o ouvi gritando que iria matá-la porque ela o deixara. E o pior é que eu era o namorado dela, a quem ele jurou matar também. Não havia muito tempo para pensar e eu gritei com ele para impedir que desse o primeiro tiro, ele apontou a arma para mim, continuei falando e me mexendo, tremendo e temendo ser a vítima fatal do crime passional, preparando-me para receber um tiro. No instante exato, joguei-me ao chão, uma fração de segundo antes dele atirar, o milionésimo suficiente para que a bala passasse muito perto de mim. Talvez a pontaria dele estivesse muito ruim, já que ele estava mais de fogo que a arma que portava e o tiro passou tão longe de mim, chegando a acertar uma das paredes mais altas da mansão.
Mesmo assim, apesar de nem tão perto passar a bala que as pessoas tiveram a impressão de que eu fora atingido. Ainda mais que, ao jogar-me ao chão, derrubei uma mesa e o tubo de molho de tomate esparramou-se sobre mim, causando a impressão de que eu estava ensanguentado. Ao estampido do tiro, todos ficaram extáticos e sem ação, a banda parou, o malabarista derrubou os malabares, o mágico se perdeu no truque, os casais pararam de se beijar (menos dois caras que não estavam nem aí e se agarravam atrás da cortina), todos pararam de dançar, e o agressor, num raro momento de lucidez, compreendeu que havia atirado e que matara alguém.
O tempo mínimo em que ele ficou paralisado foi o suficiente para que eu fosse mais rápido, levantei-me e me joguei com fúria em cima do bêbado que, sem reação, atingido por um pontapé no peito, caiu levando mesas e cadeiras. Tomei-lhe a arma e comecei a gritar com as pessoas em volta, pedindo-lhes para não se aproximarem, tudo estava bem e, falando muito e muito alto, com a arma apontando sempre para baixo, saí a procurar a dona da casa, a mulher do tal artista anfitrião.
            Rodei pela mansão, subi a escadaria, olhei as imitações de estátuas gregas, procurando-a até a encontrar seminua transando com o garçom de grande bilau na banheira do seu quarto de sessenta metros quadrados e, ainda falando alto como uma forma de espantar o medo, ou por insegurança ou por imposição, não sei bem, quis entregar-lhe a arma, ela se recusava a receber, apesar de reconhecer o perigo que ocorrera em sua casa. Falei, então, que chamaria a polícia para que eu pudesse entregar aquela arma, mas ela me implorou para não o fazer, porque não queria escândalo.
            Procurei o dono da casa que também não recebeu a arma, ao contrário, começou a me passar uma descompostura, agredindo-me verbalmente com palavrões utilizados da China ao Mississipi, obrigando-lhe a mostrar-lhe a arma, encostando-a próximo da sua orelha. O dono virou um doce, um mel, uma moça, passou a tratar-me muito bem dizendo, com a maior educação do mundo que eu podia ficar à vontade, nem me preocupei em lhe dizer o que a sua mulher fazia com o garçom porque, pela sua cara, ele já sabia e aguardava a sua vez. Guardei a arma comigo e fiquei pensando no que fazer, uma vez que eu não gostava de matar ninguém à queima-roupa, preferia outras formas mais finas de assassinato como corrupção, agiotagem e afins. Voltei para a beira da piscina e, ao encontrar a minha namorada, pedi-lhe explicações, que não havia, porque ela não me contara a verdade sobre o namoro que tivera com aquele artista.
            Diante de sua mudez e posterior tergiversação e vendo que ela era incapaz de dizer algo coerente, pois estava muito embriagada. Estando muito desconfiado do interesse dela naquele amigo, ainda mais depois que vi a sua calcinha no chão embaixo da mesa, fui obrigado a terminar aquele namoro que já me cansava de tanta futilidade. Vendo que não encontraria naquele ambiente os contatos importantes, acabei por me retirar daquela festa maluca, onde as pessoas se drogavam para sentir-se melhor e eram capazes de se matar por motivos fúteis. E drogas e sexo não me levariam ao lugar desejado por mim. Todos queriam aparecer mais do que os outros e, no fundo, ninguém se entendia, e procuravam apenas ser o próximo astro de quinze minutos de fama.
            Mas eu ainda precisava vencer a multidão de fotógrafos bestas atrás de um furo da alta sociedade, impedindo a saída de qualquer pessoa da festa, o único item razoável que encontrei para me disfarçar foi uma fantasia de carnaval de Batman do seriado antigo com máscara,  cinto de utilidades e roupa roxa, que usei para passar por eles e não ter meu rosto fotografado. Naquele momento, não me interessava aparecer no jornal como frequentador deste tipo de festa.
            Claro que aquele monte de paparazzi desconfiou de que eu era alguém importante apesar de eu não ser porcaria nenhuma, então, ficaram em cima de mim, tentaram puxar minha máscara e fui obrigado a socar o primeiro que fez isso. Veio outro e dei um tapa em sua câmara, quando o terceiro veio, apareceu uma semi-famosa de verdade, destas que sempre aparecem em tudo quanto é revista de caras, bocas e sites de internet, querendo ser manchete, rodou a saia sem calcinha por baixo e, para todos aqueles fotógrafos, isso foi muito mais interessante que um besta fantasiado de Batman. As formas generosas da ex BBB de algum ano passado eram mais voluptuosas, sensuais e generosas do que as minhas costelas aparentes e barriga saliente.
            Com esta sorte, consegui escapar mais ou menos ileso dos fotógrafos.
            Mesmo assim, no dia seguinte, saiu em todos os jornais que o artista havia atirado em alguém, dentre as fotos nas revistas de fofocas, apareceu uma pequena foto de dois centímetros quadrados onde um cara de fantasia de Batmam se retirava da festa. Para minha sorte, ninguém sabia meu nome e não prejudicaria meus planos futuros.
            No dia seguinte, um domingo, desiludido pelos fatos da festa, saí sem rumo a dirigir o meu velho fusca por algumas horas para relaxar a mente. Amanhecia, quando passei pela curva à direita, desci por uma reta onde um outro automóvel andava muito devagar e o ultrapassei em alta velocidade, para o meu azar, o guarda estava ali a olhar os carros da estrada e me parou com o intuito de multar-me, antes que ele tirasse o talão de multa, reconheceu-me e começou a conversar. Era o Sérgio, que há muito eu não via, e, agora, virara policial rodoviário, e lhe falei que eu vira o seu irmão há um mês atrás, por ocasião de uma viagem à Europa, mas não lhe disse que eu o havia visto numa esquina de Roma, próxima ao Coliseu, marcando ponto de travesti. O Sérgio ficou muito contente, acreditando no trabalho de lavador de pratos em um restaurante de comida internacional como verdadeiras as notícias que o irmão lhe mandava, e, após alguma conversa, deixou a multa para trás, apenas me recomendou que não corresse mais porque o próximo guarda não tinha amigos e até multara o próprio pai. Segui o recomendado, o que não foi tão complicado porque logo depois já era o local em que eu saía da estrada normal e pegava uma variante de terra que terminava numa balsa, onde um menino todo sujo de poeira e faminto aguardava chegar alguns trocados na forma de moedas despejadas pelos turistas em suas mãos encardidas.
Lembrei-me que, quando menino, morando à beira de um rio, numa tapera de barro com barbeiros que andavam como baratas pelas paredes, eu não passava muita fome, junto com meus irmãos, pescávamos tucunarés e jaús suficientes para alimentar a toda a família. Agora, milhões de indústrias poluíam os rios brasileiros, forçando os peixes a se mudar para a Bolívia em cardumes cada vez maiores. Os meninos não sabem mais onde ficam os rios, quanto mais pescar e, se tomarem banho de rio, sairão cheios de doenças de pele.
Aquele menino olhava com olhos enormes para a minha mão, olhos que cresciam como explosão atômica e percebi que ele queria o sanduíche frio de frango e alface e uma rodela de tomate que eu trouxera, eu tentava morder e via o rosto do menino e não conseguia. Depois de trinta e seis tentativas de morder o sanduíche,  acabei dando-lhe todo, sendo que ele o comeu com boca gigante e dentes apodrecidos mais rápido que o pensamento, deixando-me com fome de lobo-guará. Tudo bem porque logo a balsa chegou e nós embarcamos com destino ao outro lado próximo de uma pequena cidade.
Como o menino ficou em terra esperando outros turistas, trocados e mais alguma comida, retirei do porta-luvas um belo pedaço de chocolate meio-amargo, devorando-o com prazer, repentinamente, sem que eu me desse conta, uma tempestade de verão caiu e assustou a todos, os ventos fortes causaram enormes ondas na represa e a balsa ameaçava virar quando dois helicópteros do exército a sobrevoavam e o menino, que não estava mais faminto, ficou admirado com eles, que sumiram no meio da chuva e só foram aparecer mais tarde, quando o presidente comemorava o início de atividades de uma usina nuclear elétrica escondida na pequena cidade que nada tinha a não ser um grande silo para armazenar feijão e aquela enorme usina que não funcionava direito, acendendo e apagando tanto que recebera o apelido de vaga-lume. Sendo a décima - terceira vez que um presidente vinha inaugurar a tal usina.
Durante o trajeto da balsa percebi que havia um estranho peixe no rio. Semelhante à aquela massa disforme da casa da festa, nadava sem rumo sem eira sem beira sem documento pelo rio poluído. Um peixe ainda vivo subiu do fundo e o engoliu numa só bocada, alguns minutos depois o peixe apareceu morto na superfície e suas entranhas saíram e a massa disforme estava maior, como se tivesse devorado o bicho por dentro. Naquele momento eu não podia fazer nada mas eu ainda estava com a arma do dia anterior e procurei mirar, algo me dizia ser muito importante matar aquele ser no rio, no momento em que eu fui atirar, a balsa sofreu um tranco para parar no porto e o balanço tirou a minha mira, ao olhar novamente, o estranho ser havia sumido.
            A balsa atracou no porto velho e acabado em que pessoas famintas me pediam uma esmola e eu lhes dizia que nada tinha a não ser aquele sanduíche frio de frango que já havia dado para o menino. Estacionei meu velho fusca Herbie 66 na Praça Central e saí do carro a procurar o escritório de um Gérson que me ajudaria num projeto planejado há alguns meses. Um grupo de rapazes jogava capoeira na praça de terra e poeira cantando “Paraná ê, Paraná ê, Paraná!”, pareciam muito fortes e um deles me reconheceu também, mas, ao contrário do guarda, aquele era meu inimigo dos tempos antigos em que estive por ali e roubei sua namorada num baile, botando-lhe um par de chifres na frente de todo mundo ao trepar com a menina atrás da igreja e sumir da cidade. Ele partiu para cima de mim, com intenção de me matar. Não sendo de violência, esquecendo que eu tinha uma arma no fusca, corri para longe e pulei um muro para dentro de uma casa enorme, cujo dono, depois fiquei sabendo, era o deputado federal Gérson.
            O brigão não me acompanhou e andei por um jardim de flores e árvores muito frondosas até avistar de longe uma piscina em que duas moças muito bonitas tomavam banho de sol nuas. Fiquei espiando-as quando elas começaram a se beijar e entraram na água, mas, não sei como aconteceu delas começarem a se afogar e eu corri para salvá-las e consegui tirar primeiro a loira, depois a ruiva, fiz-lhes respiração boca a boca enquanto aproveitei para passar a mão em todos os lugares possíveis de seus belos corpos juvenis. Elas se recuperaram e, como não havia mais ninguém naquela casa naquele dia, elas começaram a me beijar quando eu me lembrei que não tinha nenhuma camisinha no bolso, elas falaram que tinham e a ruiva pegou uma na bolsa, fiquei com elas num verdadeiro triângulo amoroso e sexual durante duas horas.
            Deixei as duas em êxtase e aproveitei para entrar na casa e pegar algo para comer na cozinha, quando um enorme cachorro apareceu e rosnou para mim, eu estava pelado e tive medo achando que ele queria linguiça, a minha linguiça. Então, andei lentamente em direção à primeira porta que havia, tomando o devido cuidado para proteger minha linguiça. Cheguei à lavanderia da casa onde muitas roupas secavam no varal, peguei uma cueca, uma bermuda e uma camiseta, consegui entrar no banheiro apertado, fechei a porta com cuidado e me vesti enquanto o cachorro me esperava do lado de fora, saí esgueirando-me lentamente junto às paredes, olhando o cachorro com o canto dos olhos para ele não pensar que eu o encarava. Voltei à cozinha, peguei uma linguiça na geladeira e a joguei para o animal que a comeu com gosto.
            Da torneira da pia saiu outra massa disforme, e o cão se distraiu ao ver aquele estranho ser que me rondava, começou a brincar com ele como se fosse um rato, aproveitei o momento e saí dali, passei perto da piscina onde as duas continuavam nuas tomando banho de sol, elas me chamaram para continuar o triângulo amoroso e sexual, mas eu lhes disse que não tinha tempo e estava atrasado, porque aquele dia era complicado, voltei apenas para pegar as minhas roupas e elas queriam me agarrar e elas estavam chapadas de tanta bebida e baseado, que nem sabiam direito o que estavam fazendo.Ainda assim, anotei o número dos celulares delas pois, estando na mansão do deputado, podiam me servir para algo mais do que orgias.
            Consegui vestir as minhas roupas de verdade e saí tranquilamente pelo portão da frente até que um segurança apareceu e me interpelou, queria saber se eu conhecia o dono daquela casa e lhe disse que não, aí que ele me disse que era do deputado Gérson e eu lhe disse ter conhecido apenas as putas do deputado, para não dizer um trocadilho infame a aquele mastodonte. Ele me disse que elas eram as sobrinhas dele, acreditei estar numa situação complicada, mas o segurança disse que a cidade inteira já tinha passado pelas duas e todo mundo tinha culpa no cartório, mais tranqüilo e menos perdido, cheguei ao meu carro e consegui seguir viagem sem que o brigão me visse.
            A minha intenção era encontrar-me com o Coronel Gérson da Aeronáutica, que tinha prometido um excelente negócio para mim, uma concorrência de venda de frangos congelados. A minha fome ainda era muito grande porque aquele cachorro não me deixou assaltar a geladeira, e, depois de tanta estrada de terra, meu estômago parecia ter um tijolo, cheguei a outra pequena cidade, estacionei na praça central e procurei um lugar para comer algo de tira-gosto, uma vez que eu já tinha comido as duas sobrinhas do deputado. Poderiam ser até as coxinhas de frango da fábrica “Jesus me chama” desde que matassem mais a fome do que a mim.
Havia um restaurante de comida por quilo na rua principal, entrei, arrumei um lugar longe da onipresença big brother da Globo em todos os restaurantes do Brasil com sua indústria de produzir futilidades e, antes de fazer um prato enorme, enquanto passava os momentos mais decisivos da última partida de futebol importante em que nada aconteceu mas parecia que o mundo acabava depois dela, decidi ir ao banheiro. Ao sair, vi que o Cido entrou e serviu-se de muita comida, quase um quilo, ainda pediu uma cerveja e doce para sobremesa, enquanto comia, começou a vir uma algazarra vinda de uma mesa próxima e o Cido percebeu que eram três estrangeiros conversando numa língua estranha que ele não compreendia, enquanto ao seu lado, as moças de um escritório falavam em mau português detalhes esquisitos, uma estava dizendo que pôs o aparelho na boca e teve que engolir alguma coisa, era uma conversa maluca que ele não entendia, tanto quanto a dos estrangeiros.
            Mas o Paolo, isso mesmo, Paolo, e o Cido falava que Paolo não era nome de homem, mas de veado, ao que este respondia que Cido era nome de boi corno manso, acabou esbarrando num dos estrangeiros e derrubou o próprio suco de laranja no chão, sendo que aquele gringo berrou naquela língua que ninguém entendia e o Paolo pedia desculpas em português, inglês e espanhol, o que nada adiantava, pois o suco havia caído na coroa careca da cabeça do estrangeiro mais loiro e mais alto e magro que os outros, que se levantou e foi saindo sem pagar, pegou um táxi e sumiu pela rua bradando alguma coisa para os compatriotas, que também se levantaram e também iam saindo quando um policial os parou e os quis levar presos, o dono do restaurante queria receber pela comida, mas o guarda o mandava procurá-los na delegacia.
            Foi nesta hora que o outro estrangeiro retornou com mais dez homens, todos armados até os fios de cabelo na orelha do careca, e arrastaram os patrícios para fora sendo que o policial nada pôde fazer, todos os fregueses do restaurante ficaram estatelados e se transformaram em estátuas cegas, surdas e mudas feitas de sal e cola durante cinco minutos, em que nada viram nada ouviram e nada sabiam depois do ocorrido ainda mais que o policial anunciou a todos que aqueles homens eram terroristas internacionais muito perigosos, contrabandistas e traficantes de drogas e armas vindos da Sérvia.
            Mas lá do fundo eu não sabia ficar calado e gritei para os traficantes:
_ Vão embora para suas casas porque aqui não é o país de vocês, se vocês não se forem, eu mesmo lhes darei uma surra!!! Bando de Veados!
Só que um deles gritou sem qualquer sotaque estrangeiro:
 _ O quê você disse? Veado é o seu pai! Vai tomar no cu seu filho da puta!
E todos os fregueses por um momento se transformaram em gente e falaram:
_Ah, então ele fala português!.
            Pulei em cima do balcão e me armei com um espeto da churrasqueira preparando-me para um possível combate com aquele bandido que sacou da sacola uma submetralhadora que me assustou e eu me joguei no chão porque de arma queria distância, pensando que eu estaria melhor naquele momento se tivesse ficado com as sobrinhas do deputado, e que gostaria de revê-las na piscina, e que enfrentar submetralhadoras não era muito saudável, arrastei-me por baixo do balcão, até que encontrei uma saída lateral à esquerda por onde os gatos passavam pela porta e sumi dali antes que o bandido chegasse perto.
Não satisfeito, lá fora, do alto do telhado, enquanto os bandidos me procuravam dentro do restaurante, peguei um enorme tijolo e joguei no vidro do carro dos terroristas, que se estilhaçou todo, assustando o motorista que aguardava os outros, fazendo-o dar um tiro para cima que pegou no teto do veículo e o deixou marcado. Os terroristas correram para a rua, loucos para me pegar, alguns procuraram ver de onde saíra a pedra, mas eu estava escondido esgueirando-me para sair do lado da pastelaria, em que um chinês criava cachorros com os restos de pastéis para depois transformá-los em matéria prima dos seus produtos junto com ratinhos bem gordinhos que seriam apreciados à parte.
            Escapei da possível confusão pulando de telhado em telhado até sair na rua do cemitério onde encontrei de novo aquele cara que quis matar a minha namorada na festa e não conseguiu. O quê ele estava fazendo nesta cidade tão pequena com uma bíblia na mão proclamando hinos sagrados e pregando o evangelho neo-pentecostal? Ao me ver, ele me deu um tapa no pé da orelha e eu o xinguei, ele sacou outra arma e ameaçou atirar sendo contido pelo seu colega pastor e por uma rajada de tiros que vinha próximo dali, eram os terroristas me procurando e atirando em todas as lojas da rua principal, obrigando os comerciantes a fecharem o comércio. Escapei pela segunda vez do ex-namorado da minha ex-namorada. Eu ainda precisava fugir dos terroristas  e consegui chegar ao shopping na hora em que o Papai Noel chegava com as suas meninas boas Noel para dar pirulitos para as criancinhas, entrei na fila e elas me deram uma balinha de hortelã, perguntei-lhes se queriam o meu pirulito e pedi o telefone delas e elas me deram um sorriso amarelo e me mandaram tomar café no bar do meu cunhado.
            Meu cunhado não tinha bar e os terroristas ainda me procuravam. Ali no meio da multidão de crianças, mães e pais que viam o Papai Noel de helicóptero, não tinha como alguém encontrar alguém, mas eu precisava continuar com o meu projeto megalomaníaco de ser o dono do Brasil inteiro.
            Ainda me lembrando das sobrinhas do deputado, desejando as meninas Noel, perseguido por terroristas, quase perdi a entrega da minha proposta na concorrência de frango, onde eu participaria com a minha empresa naquela cidade, cheguei faltando apenas uma hora para a entrega dos envelopes e o Coronel Gérson da Aeronáutica, pediu-me para mostrar o documento e eu lhe disse que em público não poderia fazer isto e se ele quisesse favores sexuais para me dar a concorrência, eu iria procurar outro lugar onde pudesse vender meus frangos. Irado, quase me expulsou da sala, mas eu não iria desistir tão fácil e ele me disse que, se eu quisesse ganhar alguma concorrência por ali, que acrescentasse mais duzentos e cinqüenta mil no preço, eu não entendi porque e ele me chamou de ignorante informando que os duzentos e cinqüenta mil eram para ele mesmo, pois, se não, nem participar eu poderia, e ainda me mandou trazer outro documento de proposta pronta em cinqüenta minutos, pois só receberia as propostas até quatro horas.
            Corri até o meu fusca-escritório, mas no caminho havia uma obra da prefeitura que me impedia de passar, pela outra rua, os motoristas de ônibus começaram a fazer uma paralisação e o trânsito travou por ali, tentei por outra rua e um enorme caminhão manobrava para entrar numa pequena garagem, o desespero tomou conta de mim e me lembrei do meu computador de última geração que passava o que eu quisesse via internet pelo telefone celular e não tive dúvidas em redigir o meu texto, mas uma nova chuva inesperada de verão começou e a rua alagou e eu tive que sair correndo de dentro do carro que era arrastado para dentro de um túnel junto com outros veículos. Consegui uma carona num barqueiro providencial que passou ali e passei o texto para o meu assistente no meu escritório que o imprimiu e o mandou via fax para o coronel corrupto, dando-lhe os duzentos e cinqüenta mil pedidos.
            Obviamente, ganhei a concorrência pública, pois só a minha proposta era a boa. No dia seguinte, mandei que os caminhões de frango, que estavam parados em Foz do Iguaçu, vítimas de uma greve dos fiscais federais da fronteira, retornassem e os enviei ao coronel corrupto que pôde nadar no meio de um monte de frango ensacado congelado misturado com os duzentos e cinqüenta mil dólares que lhe paguei tão logo recebi a primeira parcela do pagamento que o governo federal me fez.
             A primeira concorrência fraudada a gente nunca esquece e, a partir dai, ganhei muitas outras concorrências. Cada uma mais bela que a outra. Vendi até moto-neves importadas para uso na Serra Catarinense e Gaúcha para uns prefeitos que precisavam de um pretexto para combater a Dengue e a Zica no alto da serra. E de concorrência em concorrência, venda com licitação e sem licitação, mas sempre com corrupção, comecei a juntar alguns milhões de dólares no colchão de empresas do tipo joint-ventures com sede no Panamá, mesmo país que outros milionários corruptos brasileiros juntam sua grana. Mas passei a ter um grande problema com os invejosos não Gérsons da oposição, cansados de não levar nem um centavo da propina livre, leve e solta do senado, da câmara e das forças armadas, das forças desarmadas e das forças desalmadas deste enorme país, que iniciaram, na surdina, uma represália.
            Por um tempo, achei que tudo corria bem, mas isto não ficaria assim por muito tempo. Às onze horas da noite de segunda-feira qualquer, o guarda que vigiava a fábrica em frente da minha casa e que recebia por fora para vigiar a minha fábrica também, apareceu e me falou que a CPI da Aeronáutica seria implantada e que eu estaria na lista deles. Tinha informações fidedignas de que estavam no meu encalço e, portanto, eu deveria sair de casa ainda naquela noite porque os agentes federais viriam em casa buscar-me às cinco horas da manhã. Mas aquele guarda já tinha morrido faz tempo e eu fora obrigado a pagar uma propina ao coronel, e o guarda martelava a minha cabeça que eu nem podia dormir direito durante a madrugada. Acabei ligando para o deputado que tinha aquelas sobrinhas, ele me disse que não podia atender porque estava vendo as sobrinhas dele peladas na piscina e se masturbava naquele momento e ele não poderia arrumar uma audiência com o presidente da república porque o homem não sabia de nada.
            Incomodado com aquela visão de sonho de um guarda falecido e, muito preocupado, liguei para a minha ex-namorada e lhe falei que eu precisava conversar com alguém importante, pois, nestas horas, só quem conhece alguém importante consegue escapar, ela bateu o telefone na minha cara e não queria conversa, antes ainda gritou e me disse para procurar o Gérson que ele resolvia tudo, entendi a mensagem porque os Gérsons estavam mandando em tudo, governavam o Brasil e queriam ainda se meter em literatura, música, artes plásticas e futebol, com tanto Gérson no mundo, a solução era rebatizar a todos com o nome de Juquinha.
            Tinha Gérson presidente e deputado federal, estadual e senador, faltava só um Gérson governador, mas estava perto porque tinha eleição e me chamaram para compor a mesa, eu seria o presidente, perguntei do salário e o Gérson do cartório eleitoral me disse que era tudo de graça, eu seria presidente de seção para perpetuar a democracia no país e aproveitei para lhe perguntar se é democrática esta convocação obrigatória, e se é democrática uma eleição onde o voto é obrigatório e se é democrático um governo feito só de Gérsons e de amigos dos Gérsons, excluindo todos os Zés Manés do país.
            Ofendido, o Gérson do cartório mandou prender-me e um policial grande agarrou-me e me levou para a cadeia. Aleguei que tinha curso superior e mostrei meu diploma, analfabeto de pai e mãe, o escrivão da polícia anotou que, por causa do meu “diproma” ia para uma cela especial, jogaram numa cela com televisão e cafezinho, onde estava preso um cara que falava no celular o tempo todo sem parar, fiquei ouvindo a sua conversa cheia de números, de Gérsons, de carregamentos da Bolívia e da Colômbia, de caminhões e de deputados federais, quando ele desligou, virou-se para mim e perguntou se eu conhecia alguém na Itália, disse-lhe que só conhecia o papa porque ele tinha visitado o Brasil e eu o vi de longe quando fiquei na arquibancada do Maracanã.
            Foi quando outro guarda chegou acompanhado de uma tremenda louraça, daquelas de parar o trânsito de São Francisco nos Estados Unidos, onde se presume que haja homens é de sexualidade duvidosa. A loura tirou toda a roupa e começou a se esfregar no tal preso, pensei que aquela cela era mesmo especial porque se podia receber este tratamento vip, aproveitei para ficar olhando a sacanagem, só que o guarda veio estragar o meu prazer e me mandou para outra cela, disse que aquela cela era para alguém muito especial, pois aquela cela era... completei a frase do guarda dizendo “para os Gérsons”, óbvio, até no ramo de tráfico e de prisões os Gérsons estão mandando, e aquele era o Gérson do tráfico.
            Depois eu descobri que a rede de comando dos Gérsons era tão extensa que votaram uma lei proibindo o registro do nome Gérson para os homens nascidos. Ninguém mais se chamaria Gérson, apenas os filhos dos Gérsons especiais, entendi a democracia brasileira naquele instante e desisti dela.
Sem ter a quem recorrer, vi-me obrigado a ligar para o meu pai e lhe pedir ajuda. Justo eu que não o via há mais de dez anos porque eu simplesmente saí de casa. Claro que me lembrei daquele episódio, quando eu era muito criança e roubei um balde de goiabas do sítio do vizinho. Este me viu e correu atrás de mim. Fugi pelo meio do pasto mas a visão de um touro bravo fez-me retroceder. De um lado era o vizinho correndo em minha direção, de outro, o touro pronto para atacar, saí tangencialmente ao touro. Ao ver-me, disparou atrás e agora havia dois animais me perseguindo, vi a cerca de arame farpado e a pulei de uma vez, meu azar foi a camisa enroscar em uma farpa e rasgar, fui ao chão com goiabas, balde na cabeça, camisa rasgada e o pé no poço de lama enquanto a mão afundava numa merda de vaca recém evacuada e quentinha. O vizinho pulou a cerca sem que o touro o pegasse e sem prender-se nas farpas. Pegou-me pela gola da camisa e me lascou a mão até cansar. Ao chegar em casa, fedido de merda de vaca, esfolado de apanhar do vizinho e com a camisa rasgada, meu pai soube de tudo, chamando-me de incompetente, incapaz de roubar sequer umas goiabas, jurando que sonhou com a goiabada que a mãe faria, bateu-me com vara de marmelo deixando vergões enormes nas minhas pernas e no meu tronco. Eu apanhei até quase desmaiar e prometi que nunca mais roubaria daquele jeito. Da próxima vez que fosse roubar, eu prometi que o faria bem feito. Roubaria sem que ninguém soubesse que fui eu.
Meu pai respondeu-me milhões de monossílabos átonos e tônicos ao telefone e percebi que seria impossível conseguir ajuda para sair daquela cadeia. Apelei para o único Gérson que eu conhecia e ele prometeu tomar alguma providência.
Acreditei que alguma justiça talvez houvesse porque meu advogado conseguira tirar-me da cadeia. O carcereiro olhou para mim com cara desconfiada não acreditando que eu realmente tivesse algum amigo Gérson, mas aquela ajuda custou-me um pouco caro.
            Aquele coronel corrupto não tinha mais o que fazer com tanto frango e eu enchi meus bolsos de dinheiro público, mas, quando soube que ele ia jogar fora uma parte da carga, pois estava quase estragada, mandei buscá-la e a levei para um prédio abandonado no centro da cidade de São Paulo que fora ocupado por um grupo de duzentas famílias de sem teto. Aqueles pobres coitados não tinham luz, elevador e a água buscavam numa torneira da rua, a usar a luz de vela e a subir pelas paredes ou pelas escadas, dependendo da situação de penúria de cada um. Quando eles viram aquele monte de frangos, ficaram surpresos e, de cima do caminhão, anunciei que eu estava trazendo aqueles frangos pois preferia dá-los a quem precisava do que vendê-los ao coronel corrupto da aeronáutica, fui ovacionado pelos pobres coitados e entrei no prédio para conhecer a situação deles.
            Subi andar por andar, conheci família por família, vi pessoa por pessoa e toda a sorte de miséria existia naquele prédio, desde favelados que não tinham lugar até professor que não tinha onde morar porque não conseguia pagar o aluguel e o Estado continuava a pagar um salário miserável. Fiz ali a minha campanha, distribui frangos para todos, que se esbaldaram com frango assado, frango frito, churrasco de frango, sopa de frango e tudo o mais que pudesse haver. 
            No oitavo andar que eu vi a menina que sonhava ser professora estudando na janela apenas enquanto havia luz do sol e, no nono andar, reconheci Cido e Paolo sentados num dos apartamentos que estava mau e porcamente mobiliado e, imediatamente, perguntei-lhes o que aconteceu, eles me contaram que também eram professores e que ganhavam muito mal e que moravam cada um na sua casa, até que descobriram que se amavam e as suas famílias os expulsaram e, sem ter para onde ir, levaram algumas coisas que tinham para o prédio e ficaram por lá, já que o dinheiro de ambos não seria suficiente para que se mantivessem e, desde então, ali moravam e namoravam.
            Fiquei chocado mais pela intolerância e pelo baixo salário do que pela veadice deles, mas a vida era assim mesmo, a sociedade brasileira era assim mesmo, a direita e seu projeto venciam deliberadamente, mantendo a população na sua ignorância através da péssima qualidade de educação, da exploração de mão-de-obra semi-escrava, da péssima saúde  pública, da violência gerada pela corrupção. A direita vencia a esquerda de goleada. Foi aí que vi a oportunidade e decidi candidatar-me a deputado pelo partido do deputado das sobrinhas e lhes pedi que me ajudassem na campanha eleitoral, pois eu estava decidido a acabar com a dinastia dos Gérsons, o que não seria fácil. Pois eu era apenas um Zé Mané qualquer, claro, que montado em milhões de dólares, facilmente podia passar por Gérson. No entanto, não haveria de esquecer a minha promessa infantil. Na verdade não seria bem acabar com a dinastia, mas dominá-la, ser um único Zé dono de tudo no Brasil.
             Para começar a ganhar meu eleitorado, fiz o que era preciso, mandei puxar energia elétrica, colocar um congelador usado para guardar o que sobrou para que as famílias ainda tivessem frango por mais um tempo. E claro, coloquei dezenas de televisores no prédio para todo mundo assistir a novela das seis, depois das sete, das oito, das nove, assistir todos os cultos religiosos e toda a baixaria dos programas da tarde. Entendi bem que deseducar é o melhor projeto para o político de profissão.
            Para acabar com aquela dinastia, passei a jogar o mesmo jogo e usei de todos os artifícios para ganhar concorrência atrás de concorrência pública e a acumular cada vez mais dinheiro. Quando, vendo que eu começava a ganhar poder, um outro deputado resolveu que era hora da CPI investigar aquilo tudo. Com a campanha avançando junto com a investigação, meu nome ficava cada vez mais em evidência e, como todos tinham o rabo preso, ninguém conseguia provar nada e eu acabava ficando cada vez mais com fama de bonzinho e honesto, coisa que eu não era. E aparecia o tempo todo na televisão, eu ia e explicava que era tudo intriga da oposição, e todo mundo acreditava.
            Contratei então as sobrinhas do deputado e elas participavam da minha campanha desfilando de biquíni pelas ruas anunciando o meu nome, faziam um enorme sucesso com aqueles corpanzis e seus rebolados que acabamos por formar um grupo musical onde nós poderíamos ganhar ainda mais alguma coisa, além de dinheiro.
            Formamos o grupo Deputadas Abundantes que não entendia nada de música, pois esta parte ficava a cargo de um músico medíocre que contratamos por uma merreca, o importante era as bundas delas rebolando, pois a sociedade machista brasileira adorava aquele desfile de submissão feminina, elas sabiam disto e gostavam de ganhar dinheiro em cima da burrice dos homens do país, assim, as coisas andavam bem, pois as emissoras de televisão achavam que o povo era idiota o suficiente para assistir a tudo aquilo e, em parte, era mesmo. Claro que eu havia pesquisado muito bem o mercado assistindo primeiro todos os programas para saber o que o povo gosta de ver na televisão e vi que era só isso que havia, muita baixaria. Com certeza, avaliei bem o tamanho da periferia e o grau e a qualidade da escola fornecida pelos governos estaduais em todos os cantos do país e vi que eram todos iguais, nivelando o país por baixo. A escola pública era ruim em todo o território nacional, não havia canto em que um professor conseguia dar uma aula decente, assim, os professores fingiam que ensinavam, os alunos fingiam que estudavam e ninguém aprendia nada, mantendo-se o status quo vigente desde os tempos do início da república.
            O grupo Deputadas Abundantes era o maior sucesso e a minha candidatura corria a pleno vapor, pois o povo ignorava a ligação absurda entre aquele grupelho de musica brasileira com um deputado e assim levamos aqueles meses efervescentes cheios de viagens, bebidas, drogas e rock-in-roll. Na verdade consolidamos mais um gênero musical genuinamente nacional: a musicabunda, e não pensem que o sufixo bunda significa nádegas, na verdade, vem de bundo, ou seja, aquilo que parece que está acontecendo, eu me lembro de vagabundo, moribundo e meditabundo, acabávamos de inventar a musicabunda, aquela música que parece música, e, no caso brasileiro, a que tem bunda sobrando.
Certo que de drogas e bebidas eu não abusava muito porque sabia que, se não ficasse sóbrio, meu cérebro não conseguiria pensar em novas formas de ganhar dinheiro e poder, muito mais importante do que aquelas meninas que andavam e davam para todos. Inclusive para muitos deputados participantes da CPI que me acusava, rendendo muitos votos a favor a cada vez que eu ameaçava divulgar os vídeos das sacanagens das deputadas com os deputados.
            Com certeza, mais poderoso e rico do que nunca, a poucos meses da eleição, estava muito difícil seguir com a CPI. O meu nome aparecia demais na televisão e eu, certamente, seria eleito deputado federal. Um problema aconteceu.
            Numa das viagens com o grupo Deputadas Abundantes, o ônibus parou para o músico medíocre fazer xixi no meio do mato. Ele foi e começou a demorar muito, resolvi procurá-lo e entrei naquele trecho de floresta, ouvi guinchos horríveis e gritos guturais e vi-me frente a frente com um enorme monstro querendo devorar-me, corri para o ônibus do grupo, ao sair da floresta, gritei ao motorista, este, vendo o bicho gigante sair do mato, assustou-se e acelerou dali com o veículo para algum lugar abandonando-me sozinho com aquela fera gigante: o Mapinguari.
            O monstro estava atrás de mim e eu corria muito rápido, pulava montes e me embrenhava na floresta e quanto mais eu me escondia, mais ele estava perto, seu corpo coberto de horríveis cabelos negros e vermelhos, mais de três metros de altura, todo peludo e com garras gigantes, parecia uma daquelas preguiças gigantes que habitaram o Brasil em tempos pré-históricos, mas era muito rápido e ágil dentro da floresta, por um momento, pensei não ter mais chance e ele estava a ponto de me caçar, certamente para me devorar como fizera com o músico, nesta fuga, vi um buraco pequeno logo à minha frente, enfiei-me numa toca de difícil acesso e pude sentir o bafo quente do dragão Mapinguari na minha bunda quando entrei no buraco do tronco da árvore ao lado de onde Alice dormia, o orifício dava no nada e eu caí. Uma queda bem alta e que nunca acabava, parecia uma cachoeira e uma piscina havia lá embaixo, eu caía sem saber onde. Perdi os sentidos e os recuperei após bater contra a água gelada do fundo da cachoeira, o rio me arrastou e o monstro se entalou na toca, daquela vez eu conseguira escapar e acabei parando num cais tosco improvisado na beira da represa onde um caboclo pescava e lhe perguntei onde estava.
            O caboclo olhou para mim e, surpreso pela minha ignorância, respondeu apenas:
            _ Dentro d’água, sim senhor!
            Fiquei irritado e me assustei quando vi que o caboclo era o Saci-pererê aposentado pescando, perguntei-lhe o que fazia ali e ele me disse que as florestas estavam acabando e que ele não tinha mais o que fazer, não havia animais para proteger e as árvores mais antigas foram mortas e ele não tinha mais ninguém para conversar porque o Curupira tinha se mudado para a cidade e hoje morava numa favela recebendo pensão do INSS porque tinha os pés virados para trás e não podia trabalhar, então ele ficava ali pescando, pedindo desculpas quando pescava algum peixe porque todos eram amigos dele e, depois, ele acabava devolvendo os peixes porque saci não precisa comer, afinal, saci é uma entidade imortal. A única coisa que o deixava triste era o vício da bebida, às vezes, ele precisava vender algum amigo peixe dele no mercado da cidade para comprar um litro de pinga da boa que ele ficava sorvendo ali na beira do rio.
            Deixei o saci ali falando sozinho, faltava encontrar o Caipora pelo caminho, ainda bem que este estava longe e eu não o encontraria. Cheguei na beira de uma estrada temendo reencontrar o Mapinguari, esperei algumas horas até pegar uma carona para a cidade. Eu queria saber como andava a minha candidatura, as denúncias contra mim, as Deputadas Abundantes e tudo o mais que me interessava.
            No momento em que cheguei, caía um enorme temporal na cidade e eu me abriguei embaixo de uma marquise em frente a uma loja de bicicletas que vendia apenas monociclos incrementados. Após passar a chuva, comprei um monociclo porque eu tinha pressa de chegar. Pela primeira vez na vida equilibrei-me sobre uma roda apenas e comecei a pedalar, vi que era muito fácil e comecei a correr muito pela avenida de cem quilômetros de extensão que estava totalmente congestionada por causa de um alagamento depois do temporal. Correndo naquele monociclo mágico eu superava os motoqueiros em velocidade, raspava nos veículos, quebrava espelhos laterais, metia o pé com botina de couro nas portas dos carros, aproveitava para roubar umas bolsas femininas que estavam disponíveis em bancos da frente. Repentinamente e num piscar de olhos, a noite caiu e já era de madrugada quando eu subia um aclive daquela avenida que, às três horas da manhã, estava deserta. Atordoado pela chegava tão incompreensível da noite, continuei pedalando o meu monociclo por aquele aclive difícil. Ao passar por baixo de um viaduto, um moço bem vestido da cintura para cima e sem roupas da cintura para baixo, com cara de desencantado e desesperado, entrou na minha frente e me obrigou a parar, achei que era assalto, mas ele falou algo estranho, disse que queria pegar, eu falei: “pegar o quê?”, ele disse que queria pegar no meu negócio e que estava necessitado, chamei-o de louco, desvencilhei-me da situação e continuei subindo o aclive no monociclo e ele ia correndo ao meu lado com o pau duro balançando, atormentando-me, dizia que pagava bem e que precisava muito, correu na minha frente oferecendo-me a bunda. Minha sorte foi que o aclive acabou, então parei, perguntei-lhe quanto ele tinha, ele tirou um mil reais da carteira, tomei o dinheiro de sua mão e fugi acelerando o máximo possível na descida e ele não conseguiu mais me acompanhar. Fiquei livre daquele sujeito indesejável e maluco e agora tinha mais dinheiro para me virar.
            Eu queria encontrar o pessoal do grupo Deputadas Abundantes para chamar-lhes a atenção e brigar porque não me esperaram, quando reencontrei o coronel corrupto tomando cerveja na beira da estrada esperando uma carga de pó vinda da Colômbia mandada pelo seu amigo e xará Gérson.
            A primeira reação que tive foi de contar tudo para a CPI do narcotráfico, mas eu teria que me identificar e perderia as concorrências públicas para outro. Tendo perdido momentaneamente o contato com o grupo Deputadas Abundantes e estando ainda longe da eleição, fui obrigado a saber dele se havia mais alguma concorrência a participar e ele me contou que havia várias mas tinha uma especial. Sentamos à mesa e ele me explicou que haveria uma carga bem grande e que ele coordenaria a licitação, pediu-me agora cento e cinqüenta mil euros para me dar a carga porque a inflação do dólar havia corroído parte do dinheiro que recebera anteriormente e acertamos tudo.
            Mas o grupo de traficantes chegou e um deles, meu inimigo mortal acompanhado de um dos terroristas armado até os dentes, reconheceu-me, fiquei numa situação ruim porque ele queria me matar, mas o coronel o impediu apenas com um olhar, indicando que, aos poucos, eu estava entrando no jogo e ganhando o direito de ser Gérson. Mesmo assim, o clima era tenso e naquele momento fiz uma oferta generosa aos traficantes para não ser morto e pareceu que eles não gostaram, estavam raivosos e com sede do meu sangue.
Meu fusca velho apareceu do nada andando sozinho e cantando uma canção do Roberto Carlos, entrei nele, mandei-o calar a boca ou cantar Valdick Soriano e saí dali o mais rápido possível debaixo de uma chuva de balas de metralhadoras disposto a acabar com todos eles, só não sabia como.
            Fugi, então, para o sertão acompanhando minhas aplicações pela internete, fiquei afastado das brigas políticas durante alguns dias, para que as coisas esfriassem e eles me esquecessem um pouco. Nas minhas andanças, acabei por entrar por uma outra estradinha de terra que foi diminuindo, diminuindo, diminuindo, até acabar de vez e virar uma trilha no mato por onde o meu carro não conseguia mais passar. Fui obrigado a descer e seguir a pé. Pela fazenda eu via, estranhamente, muitas zebras, em vez de bois ou cavalos. Depois, no meio do pasto, vi um grupo de gorilas brigando com as zebras para conseguir a melhor grama do pedaço, nervosos, os gorilas gesticulavam muito e urravam alto, espantando as zebras e as avestruzes que ousassem se aproximar.
            Pensei que eu estivesse na África, e só quando vi um bem-te-vi e um tucano numa árvore é que tive certeza de que ainda estava no Brasil, mas que lugar era aquele? Quem deu autorização para que se criassem zebras, gorilas e avestruzes no meio do cerrado brasileiro? Fiquei encucado com aquilo e disposto a descobrir tudo até que cheguei numa enorme casa construída no meio do nada que era aquele sertão. Uma casa luxuosa com piscina, heliporto, antena parabólica. Quando cheguei no portão de entrada, um homem com roupas de caubói norte americano me atendeu num sotaque esquisito de Portugal misturado com mexicano e  quase não se compreendia.
            Fui levado até a porta de entrada da casa e me fizeram esperar na varanda. Uma moça alta e bonita, um pouco acima do peso ideal saiu e me atendeu. Estendi-lhe a mão para cumprimentá-la e ela não deu a mínima para o meu gesto, vendo que eu carregava uma pasta, parecia enciumada porque era igual à dela e virou o rosto.
            Depois, vi lá dentro da sala uma outra moça muito mais bonita que a primeira que estava sentada no sofá a assistir um homem tocando piano enquanto tomava um chá com torradas servido por um criado. A moça não se abalou e nem se mexeu como que paralisada pelas suaves notas emanadas do instrumento. Mesmo estando totalmente nua, não se importava nem um pouco com a presença de outras pessoas ali. Realmente, a beleza dela era de se admirar e ela andava nua pelo país, ou pelo menos pela casa.
            Fiquei ali fora por mais de duas horas até que o dono da casa apareceu e me interpelou sobre quem eu era, o que fazia ali e o que queria. Menti-lhe dizendo que eu era um Gérson e ele se surpreendeu, pois ele também era um Gérson. Contei-lhe sobre minha negociação com o coronel da Aeronáutica, falei-lhe das minhas ligações políticas e das minhas intenções. Ele não foi muito amigável e não parecia disposto a me dar qualquer informação. Creio que talvez desconfiasse de falsos Gérsons. Pedi-lhe dinheiro para a minha campanha garantindo-lhe que ele seria muito bem recompensado após a minha eleição, dada como certa. Até então ele havia se limitado a me ouvir e a olhar para a bela moça nua da sala. Quando comentei com ele sobre o perigo dos animais africanos que podiam escapar e tomar conta do cerrado brasileiro, competindo com as espécies nacionais e vindo a ameaçá-las de extinção, ele se fechou ainda mais, bateu a porta na minha cara e se trancou na casa.
            Como eu não tinha para onde ir, fiquei ali a fim de conseguir pelo menos um pouco de comida e gasolina para retornar ao meu carro e ir embora. Cansado, adormeci sentado numa das cadeiras de descanso da varanda, acordando no dia seguinte com uma zebra lambendo minha cara.
            Pulei de susto da cadeira e vi a moça que tomava chá montada na zebra a me olhar. Continuava nua e bela com longos e negros cabelos brilhantes a cair até a cintura. Ela me deu uma cesta, abri-a e um café completo havia lá dentro. Fartei-me de comida enquanto ela desceu da zebra e permaneceu parada, feito estátua, ao meu lado. Para mim era difícil comer e desejar comer ao mesmo tempo, mas alguma coisa me dizia que aquela moça era apenas para se admirar, então, perguntei-lhe da possibilidade de encontrar gasolina para o meu carro e ir embora dali, ela levantou o braço e estalou o dedo, pensei que iria fazer uma mágica e me mandar embora quando quatro caubóis apareceram e me agarraram, segurei firmemente a minha pasta para que não a tirassem de mim. Eles me levaram até o meio do cerrado e me amarraram numa roda que girava, pensei que faltava apenas colocarem o meu fígado para fora para um urubu, em vez de corvo, vir comê-lo todo dia.
            Não sei se foi o sol quente do sertão ou se era verdade, mas vi girafas, elefantes e outros bichos passando na minha frente até que surgiu uma onça parda ou puma que me olhou com uns olhos famintos como se eu fosse um bom almoço. Percebi que estava ali como se fosse uma oferenda para aquela deusa animal. Seriam aquelas pessoas capazes de pertencer a algum culto secreto?
            Quando aquele bicho estava para me atacar, um barulho muito alto foi ouvido e uma aeronave começou a cair vindo na minha direção. O puma fugiu e o objeto ameaçava me atingir. Saí do fogo para cair na frigideira. A aeronave veio se aproximando cada vez mais e bateu bem na ponta da roda em que eu estava preso fazendo-me girar loucamente durante mais de cinco minutos enquanto ela fazia um pouso no chão, foi o tempo de pousar, retornar e voltar até bem perto de mim. Quando a aeronave chegou, eu ainda girava e ao parar, não conseguia pensar em nada direito. Percebi muitas luzes, vozes e pessoas vestidas com uniformes e roupas diferentes, alguém me tirou daquela roda, colocou-me dentro da aeronave e levantou vôo.
            Levaram-me para longe e me deixaram no meio de um baile de carnaval, encontrei uma amiga minha, com quem eu tinha ficado há dez anos atrás, ela me tirou dali e parou de frente a uma porta de um antigo casarão colonial no centro da cidade. Ela ficou muito contente em me ver e disse que o amigo dela estava muito doente porque tinha descido a serra de bicicleta e, nesta madrugada, caíra e batera a cabeça.
            Agora, ele estava deitado e com febre. Conversando, achei que eu poderia ajudar, pelo menos, a carregá-lo para a minha cidade natal e levá-lo a um hospital, pois, considerando todas as influências de Gérsons que eu tinha, poderia arranjar-lhe o melhor tratamento. Entrei no casarão e subimos por uma escada estreita que levava ao andar superior e me surpreendi ao ver que o amigo dela era o meu primo, que era policial.
            Interpelei-o sobre a imprudência de fazer aquilo e ele me disse que eu tinha razão. Resolvemos que o levaríamos até São Paulo para que ele se tratasse porque naquela cidade não havia um hospital bom. Coloquei a sua bicicleta no bagageiro do carro da minha amiga e descemos com ele, numa maca, cuidadosamente, por aquela escada estreita. Aproveitei para perguntar-lhe se a mulher dele sabia que ele estava ali e ele me falou que não, que eles tinham brigado e que estava arrependido.
            Ao ver no hospital as minhas credenciais de Gérson, a enfermeira imediatamente arrumou o melhor quarto para o meu primo, vieram os melhores médicos e fizeram os melhores exames, o meu primo se tratou e eu queria encontrar as Deputadas Abundantes para retomar a minha campanha. E também precisava saber da concorrência com o Coronel. Desci a serra de helicóptero até o litoral pois tinha notícia de que elas estavam lá. Ao passar pela Serra do Mar, a porta se abriu e eu caí no meio da mata. Com certeza, meus inimigos políticos preparavam aquela armadilha, mas não foram espertos, pois, se queriam que eu morresse, deveriam jogar-me no mar, erraram o alvo e caí na mata em cima de um antigo jequitibá rosa de oitenta metros de altura. Desci lentamente aquela árvore enorme contando os pássaros e macacos que passaram por lá. Perambulei sem rumo até encontrar a casa de uma bruxa muito velha com uma verruga no nariz.
            A bruxa se pendurava num balanço e, ao ver-me quis mandar-me aos vermes, discutimos e ela tomou a minha mão e a leu. Sem me dizer qualquer palavra, assustou-se com o que estava escrito nela e arregalou aqueles enormes olhos, mostrando-me uma boca com apenas cinco dentes, expulsou-me de sua casa e eu tornei a vagar pela mata até reencontrar o velho saci que pescava e bebia. Tive pena dele e continuei descendo a serra a pé, encafifado com o que a velha bruxa tinha visto ao ler a minha mão.
            Próximo do caminho, alguns metros abaixo do barranco em que eu estava, havia um lago enorme escondido pela Mata Atlântica e, dentro dele, eu vi nadando um enorme jacaré com mais de seis metros de comprimento, vi um homem se aproximando, gritei para que ele saísse dali porque o jacaré poderia pegá-lo, ele nem deu bola, parecia surdo e caminhava como um zumbi, não deu outra, o jacaré o pegou com uma agilidade incrível, arrastou-o para o fundo do lago e o comeu. Dois outros homens que vinham logo atrás viram tudo e chegaram perto do lago. Não acreditavam que pudesse haver um jacaré tão grande assim, gritei para que eles saíssem de lá porque o jacaré podia voltar e eles nem deram bola. Alguns minutos depois, o jacaré voltou e puxou mais um para o fundo do lago, ainda pude ouvir o velho saci que pescava falando:
            _ O jacaré está com fome hoje! Ré, Ré, Ré!
            Caminhei na mata e desci a Serra do Mar, quando cheguei lá embaixo na cidade, fui procurar o chefe do ECAD porque eu queria receber meus direitos autorais relativos às vendas das músicas do grupo Deputadas Abundantes, ele se negou a me pagar e eu falei que ia montar uma chapa na próxima eleição, seria a Chapa Adão que iria destroná-lo porque eu iria ganhar, pois era amigo dos Gérsons. Ele tirou uma arma de dentro da gaveta e me disse que se eu montasse tal chapa me matava. Ele não sabia com quem falava, então tirei uma carteira de identidade falsa do bolso que dizia que o meu nome era Gérson. Ele entendeu logo e deixou-me registrar a chapa, mas eu desisti porque já concorria na outra eleição.
            Não encontrei as sobrinhas do deputado e acabei por desistir do grupo das Deputadas Abundantes, mas retomei a minha campanha para deputado federal e acabei por ser eleito com a maior votação do país, uma vez que havia prometido uma sobrinha do deputado para cada homem solteiro. Depois da eleição, claro que não cumpri tal promessa absurda que visava apenas ganhar, mas, sendo deputado e alcançando finalmente o status de Gérson oficial, ganhei imunidade e comecei a vender informação sigilosa no mercado negro. Fiz mais alguns milhares de dólares com isso e aproveitei para pisar nos meus inimigos.
            Ouvi de um dos meus companheiros de quadrilha política que algo muito grave acontecera numa cidade pequena do meio do Brasil em que um grupo de pessoas soltou todos os seus instintos animais e destruiu a prefeitura, matando o prefeito, depois, destruiu a câmara dos vereadores, matando os vereadores, não satisfeitos, continuaram a onda assassina e mataram os juízes, depois, obrigaram todos da cidade a ficar do lado deles, no entanto, ensandecidos, saíram da cidade e tomaram a estrada, disseram que o exército estava atrás do grupo. Não dei bola para aquilo e achei que de loucura já bastava a minha. Continuei ganhando meu dinheiro desonestamente na minha nova posição.
            Mandei um recado para aquele capoeirista que quis me pegar mandando calar-se porque eu fora eleito e ele ficou quieto, pois, neste país, não se discute com alguém que chegou a Gérson. Depois, para aquele ex-artista que tinha virado pastor e que tentou matar-me duas vezes, mandei-lhe autorização para abrir a própria igreja fajuta com a condição de que me pagasse vinte por cento adiantado, por ano, de toda a arrecadação. E, se ele não conseguisse enganar os pobres coitados que lá fossem, perderia a igreja e o ganha-pão. Fez direito tudo o que pedi e ainda mais, encheu a igreja de gente pobre e desiludida, arrancando-lhe o pouco dinheiro que tinham.
            As Deputadas Abundantes contrataram minhas secretárias nos melhores bordéis do Rio e de São Paulo, e apesar delas não saberem escrever um a no teclado, quem precisava disso? Desfilavam o dia inteiro de biquíni, porque em Brasília faz muito calor o tempo todo e, se algum eleitor viesse reclamar, elas cuidavam bem dele, se alguma eleitora viesse reclamar, elas a mandavam para o salão de beleza especial que eu havia montado, para uma sessão gratuita de tratamento com direito até a cirurgia plástica. E, claro, para os meus novos amigos Gérsons deputados, senadores, servidores do primeiro e segundo escalão, sempre haveria uma deputada abundante na medida certa e, para aqueles que eram gays, criamos os Seguranças Musculantes, um grupo de homens fortes e gays todos com bilau gigante para satisfazer os necessitados.
            Eu estava muito sossegado como deputado Gérson oficial, amigo dos Gérsons, e nome falsificado de Gérson quando uma carta do Ministério Público assinada pelo Benedito chegou, perguntei no meio da sessão na Câmara: quem será o Benedito? Ao ouvir o nome todo mundo sumiu de perto de mim e percebi que havia algo muito grave, qualquer coisa ruim estava por acontecer.
            No dia seguinte, policiais federais arrombaram a porta do meu escritório e levaram o meu computador e mais um milhão de reais em notas de cinqüenta. Alguém fotografou tudo e fiquei em maus lençóis. Tive certeza de que só poderia ter sido o Benedito.
            Mas, para quem enfrentou saci, jacaré, máfia sérvia, coronel e outros corruptos, enfrentar o Benedito seria fácil, pensei e me dei mal, pois eu não sabia que a confraria secreta dos Beneditos era mil vezes mais forte que todos os Gérsons juntos, eu havia interferido na vida de um Benedito que era dono de Televisão, Rádio, Revista, Jornal e Internete, se eu soubesse. Mas dei um jeito de escapar, pedi licença do congresso e fiquei noventa dias no programa de televisão de exposição das atitudes humanas imbecis do concorrente, elevando o nível de audiência e deixando aquele Benedito com mais raiva porque estava perdendo os anunciantes.
            Logo vi que era hora de lutar novamente contra os poderosos do país, afinal, queria eu ser o único poderoso. Compareci, então, à festa de entrega dos prêmios dos poderosos do ano e pedi que a minha ex-namorada ficasse com o filho do Benedito. Quando eles estavam juntos, fotografei-os em cenas calientes de romance, depois, meus guarda-costas o seqüestraram e fizemos fotos de um dos Seguranças Musculantes nu e de bilau duro prestes a entrar no filhinho de papai e mandamos para o Benedito. Dei um recadinho para o filho, pedindo que o pai ficasse na dele e não se metesse comigo, porque senão eu lhe cortaria as orelhas e o segurança é que meteria nele. Além disso, joguei pesado comprando ações daquela companhia de televisão e fiquei dono de uma boa porcentagem, que foi crescendo com o tempo, na medida em que fui conhecendo os sócios acionistas e adquirindo mais e mais poder.
            No entanto, o poder tem o seu limite. E, quando os meus interesses em estabelecer uma base de produção de urânio para bombas nucleares em completo sigilo foram descobertos pela espionagem de uns caras do FBI, um tal secretário dos EUA me mandou um recado dizendo que eles iam jogar uma bomba na minha fábrica. Falei para ele que eu não era o Sadam, mas mandava na SUDAM, na SUDENE, e na SALADA GERAL que era o país. Um tal de general americano, veio até mim, trazido pelo meu amigo coronel, aquele da concorrência. O coronel falou que eles queriam um acordo. Perguntei quanto eles pagavam e falaram alguma coisa de um bilhão de dólares. Achei o preço razoável e concordei em vender a minha produção de urânio enriquecido próprio para bombas nucleares para uns caras árabes, todos de olhos azuis e cara de afegãos.
            Mas o general americano, que se intitulou secretário do presidente, queria mais. Eu deveria intermediar a venda de alguns milhões de fuzis, granadas, metralhadoras e outras armas convencionais para uns guerrilheiros na Colômbia, na África e no Oriente Médio, ouvi algo de curdos do Iraque. Ele falava em inglês e gritava algo como We need more war. More war is more money. More money we need.
            Para mim se era dinheiro no meu bolso tanto fazia. No entanto, perguntei-lhe se as armas eram para matar alguém, e ele disse que era para matar pobres do terceiro mundo que, afinal, não eram gente como ele. De raça superior. Eu, como falso Gérson, também não me preocupei, porque dinheiro era o que me interessava.
            Aproveitei e desviei uma pequena parte daquela carga para uns traficantes que queriam tomar um morro do Rio de Janeiro. Pagaram bem e pagaram à vista, em dólar. Ofereceram-me coca da boa, vinda da Colômbia e lhes disse que aquele não era o meu ramo. Meu negócio era só tráfico de armas, concorrências fraudulentas, as Deputadas Abundantes e televisão popularesca que mais iludia que informava.
            Onde eu estava mesmo? Traficantes, Deputadas Abundantes, Saci aposentado, fazenda no meio do cerrado... sei que cheguei em casa no meio da noite e não estava nem meio bêbado, se fosse possível chegar meio bêbado, ou se chega bêbado ou se chega sóbrio. Cheguei em casa, apesar de eu não saber se eu tinha casa.
De noite, em casa, abri a geladeira e vi a luz... não era apenas a luz da geladeira, era também algo mais, algo mais...A luz iluminando a geladeira, o frio nas comidas, os frangos congelados que eu vendia... tudo estava relacionado, eu sabia que precisava que devia... dominar o mundo dos Beneditos. Eu sabia que a mobilidade social no Brasil só existe dentro da mesma classe: a classe dos ladrões e corruptos. Eu sabia disso, e aquela luz na geladeira me lembrou do meu destino. No entanto, havia algo que me perturbava.
O ser disforme aparecia frequentemente e a mim era impossível decifrá-lo. Em todas as vezes que eu tentei atingi-lo e destruí-lo, algo aconteceu que me impediu. Ele deveria estar lá fora, espreitando-me feito a onça em busca da presa. E ele não morria, pior, matou a todos que tentaram comê-lo. E porque me perseguia? Comecei a achar que minha vida estava em perigo, eu não podia sequer contratar um assassino profissional para matá-lo porque não se mata algo que não se conhece.
            Ao mesmo tempo, ainda injuriado com aquela fazenda que tinha animais da áfrica, pensando em quem eram eles e por que me expulsaram daquele jeito. Mandei dois capangas lá para saber e descobriram que a fazenda pertencia ao Benedito. Mas será o Benedito? Exclamei pela segunda vez. Algo me dizia que o reinado dos Gérsons estava chegando ao fim, começaria o dos Beneditos?
            Mas ainda havia muitos Gérsons pelo país todo e outros poucos Beneditos. Os Beneditos me perturbavam.
            Por fim, aceitei entrar no ramo de tráfico de drogas, e incorporei como mais um ramo da minha organização que, a aquela altura, faturava mais do que muita indústria importante. Dividi todos os meus negócios ilícitos em setores e acabei formando uma holding, aprendi muito no tráfico, principalmente a colocar os menores de dezesseis anos para cometer os crimes de guerra, inimputáveis, eles eram as pessoas ideais. Ganhavam pouco, contentavam-se com a fama e o poder passageiros que uma AR-15 na mão trazia e, com menos de vinte anos já estavam mortos, pois, nesta guerra, o soldado não vive mais do que isso, então, eu não pagava nenhum direito trabalhista, até mesmo porque, se passasse dos vinte anos, ou sumia do mapa e ia para longe, ou a gente sumia com eles.
            E não faltavam crianças para entrar no tráfico, todo dia estavam nascendo montes de crianças, que continuavam pobres e ignorantes graças à políticas educacional que os meus companheiros Gérsons instalaram no país, estas crianças chegavam nas minhas mãos, este era um ótimo negócio e comecei a perceber que poderia entrar em outras atividades com as crianças.
            Peguei umas meninas pobres da periferia e lhes ofereci alguns reais em troca de um pouco de sexo, que eu vendia numa mansão para uns vereadores, o negócio começou a melhorar e comecei a vender o sexo de meninas para uns deputados estaduais, prefeitos, deputados federais e até um senador velho começou a aparecer, ávido por meninas de menos de quinze anos.
            O velhinho safado mal entrava, arrancava as calças e ia atrás da primeira menininha que encontrasse. Era totalmente maluco. Este negócio eu deixei para as Deputadas Abundantes agenciarem, elas eram de total confiança, e, a cada dia, eu conseguia recuperar minha confiança e aumentar minha fortuna e meu poder para enfrentar os tais Beneditos, eles que não esperassem, porque eu, como falso Gérson iria mostrar-lhes quem manda, não são Gérsons nem Beneditos, mas eu, somente eu.
            O que eu não podia contar era que aparecesse aquela casa no meio do morro, de um dia para o outro, surgiu uma casa enorme, quem construiu aquilo no meio da minha favela predileta? Uma casa com dois andares e dez janelas na frente, fui até lá para saber quem fizera aquilo.  Subi as escadas do morro indignado, afinal, eu mandava nas pessoas que mandavam ali. Não autorizei que se construísse qualquer coisa no nosso observatório.
            Na frente, li a placa “Centro Cultural do Morro” e fiquei preocupado. Lá dentro, diversas salas de aula, começaram a ensinar as crianças a ler e a escrever, a fazer artes plásticas, dança, teatro e poesia. Uma tal ONG queria acabar com a pobreza e a ignorância das crianças. Um absurdo, eu tinha que dar um jeito de acabar com esta ONG, então, mandei lá um cara bom, destes que matam primeiro e nem perguntam, para dar um jeito no tal presidente da ONG, meu capanga foi e nunca mais voltou e fui eu mesmo conhecer o presidente da ONG.
            Cheguei a aquele casarão no meio dos casebres e entrei. Perguntei educadamente pelo presidente da ONG, e me indicaram a sua sala, a primeira à esquerda após subir a escada, ao chegar, olhei pela porta e vi um senhor bem velho, magro, de longas barbas brancas, sentado, e pensei que não era possível que aquele velhinho fosse o dono, parecia mais um papai Noel desidratado.
Eu sabia o que deveria fazer, saquei a arma e atirei no velhinho, descarreguei tudo, sempre mirando a cabeça. O fato é que as balas pareciam ter saído do filme Matrix, deu para ver a curva que elas fizeram, o velhinho só estendeu a mão e elas pararam no ar, aí ele deu um peteleco em cada uma delas, elas voltaram na minha direção, esquivei-me e elas atingiram a parede atrás. Agora o ser disforme não aparecia para me salvar daquelas balas.
            Decidi fazer o serviço com as próprias mãos e fui entrando, mas não passei da porta, parecia haver alguma barreira invisível impedindo-me de entrar, eu socava o ar e sentia minha mão batendo em alguma coisa dura, como se houvesse ali uma porta, pensei que fosse um vidro ou uma outra coisa invisível, mas duas crianças passaram do meu lado e entraram para receber os cumprimentos do velhinho, que as afagou. Achei que a tal barreira tivesse sido desligada, tentei de novo e não consegui entrar, bati a cara numa superfície dura e áspera novamente, e vieram outras crianças e elas entravam e saíam tranqüilamente e eu não conseguia nada, o quê estava havendo?
            O velhinho me viu e sorriu. Quando uma criança saiu, eu a parei e lhe perguntei como ela conseguia entrar, na sua ingenuidade, ela disse que era assim, e entrou e saiu e, novamente, eu tentei e não passei da porta. Será que só as crianças conseguiam?
            Logo veio uma secretária de meia idade que também passou pela porta, quando ela voltou, parei-a e lhe perguntei o quê acontecia que eu não conseguia entrar e ela me disse que somente aqueles que tinham coração puro podiam entrar, pessoas ruins, como eu, não podiam.
            Aí eu fiquei louco, voltei para o meu quartel general e chamei todos os meus homens disponíveis, pedi a todos que atravessassem a porta e ninguém conseguiu. Todos bateram com a cara na parede invisível, alguns fizeram o sinal da cruz, outros fizeram um sinal de negativo, e todos viram as crianças passando, a senhora passando e o velhinho lá dentro.
            Mandei a todos trazerem as granadas, os fuzis e as metralhadoras, chegamos frente à casa, mandamos todo mundo sair e começamos a destruir aquela mansão, enfiamos dinamite nas fundações e explodimos tudo, jogamos granadas, atiramos com os fuzis e as metralhadoras no velhinho que se estilhaçou em milhões de pedaço, não sobrou tijolo em pé nem velhinho feliz para contar a história. Pronto, aquela parte estava acabada e esperei nunca mais ver o velhinho papai Noel desidratado.
            No dia seguinte tudo estava em pé novamente, não era possível, voltei lá e o papai Noel desidratado continuava no seu quarto e a mansão estava repleta de crianças.
            Novamente, chamei meus capangas, munidos de toneladas de dinamite e granadas. Mandei explodir de novo, e de novo e por vários dias o prédio aparecia construído sozinho de manhã. Depois de sete noites, destruímos tudo de novo. Então, fiquei acordado por toda a madrugada vendo tudo destruído para ter certeza de que ninguém reconstruiria aquele prédio onde gastamos mais da metade de todo o arsenal que eu possuía guardado. Vigiei a noite inteira e, quase amanhecendo, acreditando que, finalmente eu vencera, vi o sol nascendo e desviei o olhar por exatos doze segundo para aquele belo sol que nascia. Ao olhar de novo, tudo estava construído e o velhinho Papai Noel Tarzan depois da vigésima gripe estava lá sorrindo.
            Claro que eu queria acabar com aquilo, era um absurdo, alguém estava querendo fazer alguma coisa boa com as crianças do país, se isto se espalhasse, logo não haveria mais como eu enganar tanta gente e manter o meu poder, mas eu não podia acabar com aquilo neste dia porque fui convidado para a festa de casamento da filha do Gérson Coronel da Aeronáutica.
Coloquei meu melhor terno e fui ao enorme salão na beira do lago Paranoá, construído exclusivamente para esta festa fantástica. Lá encontrei todos os Gérsons donos do Brasil e me surpreendi quando encontrei um Benedito, mas, ao contrário dos outros, este estava do lado dos Gérsons e compreendi que havia já um projeto de união de partidos dos Gérsons com os Beneditos, isto me acalmou um pouco e percebi que todos os meus negócios ilícitos conquistados nos últimos anos teriam uma chance de sobreviver, desde que, é claro, ninguém descobrisse que eu era um Zé Mané disfarçado de Gérson.
            O Coronel me apresentou sua filha e vi que ela era uma moça amiga da minha ex-namorada, se eu soubesse disso, tinha dado em cima dela e me saído bem mais cedo, só que o noivo era aquele ex-capoeirista que tentou me pegar uma vez, agora ele não poderia fazer nada contra mim e temi que, no futuro, ele interferisse nos meus negócios.
            Mas, nesta festa, eu conheci um senhor grande, branco de olhos azuis esbugalhados e bem gordo, era dono do banco em que eu tinha minhas contas sujas e, ao saber meu nome, começou a tratar-me muito bem, talvez porque soubesse algo que eu não sabia, talvez porque se lembrasse da movimentação bancária que as minhas empresas ilegais faziam em seu banco, o quê lhe trazia enormes lucros pois meu dinheiro ficava parado em diversas aplicações, centenas de contas para despistar e outras coisas mais.
            Mas, como eu não podia ficar numa festa sem arrumar um desafeto, mesmo sem querer, um sujeito achou que eu estava olhando para a mulher dele e, realmente estava, afinal, aquela não era uma mulher comum, era um fenomenal monumento à beleza. O tal sujeito veio tirar uma satisfação com uma avidez muito grande, eu lhe dei um pequeno empurrão até a janela e ele caiu no lago Paranoá, os seguranças da festa vieram atrás e eu saí ligeiro pela primeira porta que encontrei, passei por um corredor apertado e cheguei em mais uma porta, os seguranças que estavam ali nada perguntaram e nada sabiam do ocorrido lá no salão e me deixaram entrar, lá dentro rolava a maior festa do cabide, todos os mais importantes políticos e magnatas do pais na maior sacanagem com mulheres, cheirando todas no som mais alto, espalhando-se pelos sofás em grupos de cinco ou seis pessoas, onde não se sabia qual era a perna de quem, por sorte eu havia trazido minha micro-câmara caneta espiã e fotografei todo mundo, aquilo poderia ser muito útil no futuro.
            Ao perceber a movimentação na entrada com os seguranças, esquivei-me no meio daquela gente nua e drogada até uma pequena porta por onde passei e fui dar nos fundos do salão de baile, esgueirei-me pelo mato, bem rente à parede, chutando algumas baratas e um rato que passava ali, subi por detrás da construção e retornei ao estacionamento, decidi que ia fazer uma pequena armação e peguei o meu carro que agora não era mais um fusquinha, mas uma cabine dupla avantajada e blindada, avancei com ele em direção à porta de entrada, grande o suficiente para passar e entrei no salão com carro e tudo, todo mundo se assustou, raptei a tal mulher monumento, subi as escadas com o carro, dei ré, passei por cima de algumas mesas e saí da festa de casamento sem comer o bolo. Levei a mulher monumento para o Motel mais distante e passamos a noite inteira juntos, De manhã cedo, deixei-a pular de  helicóptero e pára-quedas dentro e fui ao Rio.
            Estava no estádio para assistir a final do campeonato brasileiro entre Corinthians e Flamengo, Maracanã lotado, jogo muito importante, lembrei-me de ir ao vestiário e exigir que o time do Corinthians ganhasse, expliquei bem a um dos jogadores do Flamengo que ele ganharia dez milhões de reais cada um para deixar o Timão ganhar no último minuto num pênalti besta que ele cometeria. Deixei cinco milhões adiantados e fui assistir o jogo.
            O jogo não chegou ao final, aos trinta minutos do segundo tempo, ainda no zero a zero, o estádio começou a tremer com o barulho das duas torcidas. O gramado começou a inchar repentinamente, os jogadores foram jogados para o lado e do meio do gramado a cobra grande veio do rio Amazonas e deu no meio do Maracanã, saiu por um enorme buraco e devorou todos os jogadores que estavam em campo, avançou para a torcida e o corre-corre e deus-nos-acuda geral fez com que muita gente fosse pisoteada.
            A cobra subia os degraus do estádio devorando a todos e percebi que eu deveria sair dali de algum jeito senão seria devorado também, foi quando subi na antena de televisão do estádio e esperei o máximo possível, quando a cobra passou por perto eu saltei na sua cabeça e me agarrei no olho da mesma que, de tão enorme, nem sentiu que eu segurava na beiradinha do olho.
            Então a cobra gigante de mais de duzentos metros de comprimento e cinco de diâmetro voltou a cavar um túnel e se enterrou novamente, eu estava embaixo da terra com ela e vi que havia uma enorme galeria de túneis cavados por aquela imensa cobra. Na segunda vez em que ela saiu da terra eu saltei e me agarrei num galho de árvore para não cair com tudo e vi a cobra voltando para o fundo da terra.
            Percebi logo que eu estava em Brasília novamente e não perdi tempo. Lancei o projeto de construir o primeiro metrô entre Rio de Janeiro e Brasília. Negócio de milhões de reais que seriam muito úteis para o meu bolso.
            Lembrei da mulher monumento e fui à sua casa em hora em que o marido ciumento não estava e seqüestrei-a para passar as minhas férias em Natal com ela. Aluguei um belo e enorme chalé na praia, com vários cômodos, de frente para o mar, paguei com o dinheiro arrecadado em vários dos meus negócios ilícitos. O chalé possuía uma grande sala com piso de madeira encerada, da metade da parede oposta a que se entrava, iniciava-se o corredor que dava para os quartos e, logo no primeiro quarto, quando abri a porta, vi três camundongos pequenos que tentaram esconder-se no guarda-roupas, chamei o bichano que pegou um deles, ao abrir a porta do guarda-roupa, de dentro dele saiu outro gato que pegou o segundo camundongo e o terceiro correu para a grande sala, peguei meu chinelo e arremessei, quase atingindo-o, corri para pegá-lo, pois o pequeno ratinho tentava enfiar-se por um buraco, os gatos também foram atrás e eu fui mais rápido, atingi o animalzinho com o outro chinelo e ele ficou atordoado, foi fácil para os gatos que o dividiram em dois pedaços, cada um com a sua parte.
            No outro dia passei em volta da casa e observei que ela possuía grades muito fortes em todas as portas e janelas, estranhei aquilo, pensei que deveria haver muitos ladrões por perto, mas passei um grande susto quando comecei a ouvir uma sirena tocando muito alto, e todos os turistas que estavam na praia começaram a correr, o quê significava aquilo? Em meio a aquela correria, perguntei para o dono do bar que fechava o seu estabelecimento com pesadas portas e cadeados:
            _ São as hordas que estão vindo! Fuja enquanto é tempo!
            Que hordas eram aquelas? Quem participava delas?
            Não pensei muito e nem queria saber que hordas eram aquelas, corri até a minha casa, mandei a mulher que estava comigo naqueles dias entrar rápido e comecei a trancar todas as portas com aquelas grades pesadas, só então eu reparei que as paredes da casa eram muito grossas também.
            Sentei-me na sala e aguardei. Por alguns minutos pude não ouvir ruído, tudo parecia imóvel, nem o vento soprava, nem os pássaros piavam, pareciam ter sumido. Então comecei a ouvir o ruído de uma grande avalanche que vinha subindo de intensidade com rapidez, subi ao primeiro andar e olhei pelas frestas das janelas e vi uma multidão enorme correndo na direção em que eu estava.
            Milhares de famintos, estropiados, rasgados, impossível de se calcular, corriam ou andavam ou marchavam, não sei. E vinham devastando tudo pelo caminho, como se fossem formigas cortadeiras ou ratos. Estavam armados de todo tipo de utensílio, enxadas, foices, revólveres, vinham destruindo e devorando tudo o que encontravam no caminho, como vorazes gafanhotos atacando uma plantação. Famintos em busca de proteína animal encontrada em ricos gordos e sedentários.
            E chegaram até o local em que estava minha casa e começaram a atacá-la de todos os lados, as pesadas paredes sofriam golpes de marreta, pareciam querer demolir tudo, as grades eram forçadas e muitos apareciam com serras manuais de ferro para serrá-las, imaginei que se ficassem ali por umas duas ou três horas, talvez conseguissem serrar as grades e cadeados e poderiam invadir a casa onde eu estava.
            Peguei meu revólver e comecei a ameaçá-los mas ninguém ligava para os meus brados, pareciam não ter ouvidos, ter apenas a vontade de serrar as grades, então atirei e derrubei um dos seres humanos reduzidos a animal e então percebi que muitos estavam praticamente nus, homens e mulheres nus, não possuíam sequer roupas para vestir-se, e atirei novamente, e, a cada um que eu abatia, outros dois recolhiam aquele corpo e outro recomeçava o serviço, foi então que a Márcia veio de lá de dentro, puxou a cortina e viu atrás dela um botão, apertando-o.
            Uma pesada porta de aço desceu e fechou a parede em frente à grade, as pessoas que ali tentavam serrá-la, tiveram que tirar rapidamente os braços e mãos para não prendê-los.
            _ Como você sabia disso?
            _ Tinha um aviso na porta da geladeira.
            Corremos, então, a apertar todos os botões atrás das portas e janelas que restavam, em pouco tempo estávamos na completa escuridão, ouvindo o barulho das pessoas que passavam, imaginando que eram milhões de ratos famintos procurando comida, talvez, guiados pelo flautista encantador.
            Ouvimos o barulho das hordas passando pela casa por trinta e seis horas seguidas.
            Fiquei pensando em tudo aquilo. Naqueles que construíram a casa onde eu estava e na sorte que tive de estar em uma fortaleza. Nas pessoas que estavam destruindo tudo. Pensei no desejo que tive de destruir tudo quando eu era criança e morava no interior em que quase não havia comida. Lembrei-me da fome que passei, dos gafanhotos que comi, dos meus irmãos que morreram de fome e de sede ainda pequenos como se fossem anjos. Pela primeira vez na vida, chorei.
            Novamente, aquele silêncio fez-se onipresente, ouvíamos nossas respirações, resolvemos levantar a porta de aço de uma janelinha do banheiro de cima para averiguarmos a situação. E o que vimos foi algo terrível.
            Todos os habitantes de classe média para cima foram devorados, havia caveiras espalhadas pelas ruas, as hordas passaram comendo tudo, animais, comida, pessoas, o banquete antropofágico que restou aos famintos do país. Telefonei para os meus gerentes, nenhum deles atendia.
            Nem quis pensar muito, apertei um botão e o alçapão que guardava o meu helicóptero abriu-se, coloquei galões e mais galões de gasolina dentro do aparelho para eu reabastecer até chegar a São Paulo. Tinha gasolina para ir e voltar pelo menos duas vezes. A mulher preferiu ficar, disse que se sentia mais segura trancada naquela casa. Subi no aparelho e levantei vôo para averiguar pessoalmente o que ocorria com os meus negócios e com o país.
            Do alto, pude avistar o avanço das hordas famintas e destruidoras. Eram milhões de pessoas que marchavam, gafanhotos sem rumo ou direção, seguiam pelo litoral e pelo interior numa marcha de quilômetros de gente. E nos lugares onde as hordas não haviam chegado, as pessoas apenas se divertiam nas praias, bebiam cerveja e se acasalavam, apenas isso. Percebi que não havia preocupação com as hordas famintas. E via as hordas avançando.
            Por toda parte eu vi a destruição, as grandes cidades estavam tomadas. São Paulo estava com milhões de automóveis parados nas ruas, abandonados à passagem das hordas. Aqueles que não conseguiram fugir transformaram-se em cadáveres reduzidos às suas ossadas. Havia ossadas dentro dos prédios, nas ruas, dentro dos automóveis, muitos cadáveres ainda tinham seus restos de carnes e os urubus avançavam sobre eles. Os ratos roíam os ossos, até um enorme urubu-rei fora atraído pelos restos humanos que se espalhavam pela cidade. Lobos, onças, e outros bichos aproximavam-se atraídos pelo cheiro da carne fresca das pessoas.
            No alto dos prédios, as pessoas lutavam com os famintos numa luta desigual, os famintos subiam pelas escadas e, dadas as condições, as pessoas armaram-se e ficavam apenas esperando que eles chegassem pela única porta que dava acesso ao teto, assim que os famintos das hordas começavam a chegar, eram abatidos, os mortos, então, bloqueavam a porta, mas os que estavam atrás, tiravam os mortos e mais vinham, e assim a batalha se seguia por horas a fio até que a última bala saísse dos revólveres e por maioria, as hordas venciam, e chegavam aos moradores dos telhados, estes entravam em luta corporal com os famintos, lutavam até morrer, muitos preferiam pular do alto dos prédios ao invés de lutar. No final, no alto dos prédios, eu via as hordas famintas fazendo os churrascos de gente.
            Em alguns casos, sendo impossível às hordas entrar no prédio, elas começavam a atear fogo nos edifícios e estes começavam a arder, os moradores, tentavam apagar o incêndio e se viam em situação difícil. A classe média ainda não conseguia organizar-se e combater as hordas dos famintos que tomavam a cidade. A marinha, o exército e a aeronáutica organizavam-se, as famílias dos militares iam para os quartéis e havia a resistência militar armada, mesmo com muitas armas e aviões era quase impossível deter a enorme quantidade de gente, em volta dos quartéis do exército, os soldados cavavam trincheiras e atacavam as hordas com granadas, morteiros e balas, mas era muita gente avançando, avançando, avançando. Logo acabaria toda a munição e restaria apenas a luta corpo a corpo.
            A marinha mandou os familiares dos seus generais e marechais para junto com os mesmo para o porta aviões Minas Gerais, talvez o único lugar seguro, junto com as plataformas de petróleo em alto mar, mas não haveria alimento suficiente para muitos dias e, em algum momento, o porta-aviões teria de retornar à terra, a idéia destes generais era levar seus parentes todos para o arquipélago de Fernando de Noronha, para Ilhabela, para Ilha do Mel, Ilha Grande e outras ilhas onde as hordas tivessem de atravessar o mar para chegar. Era preciso urgência pois muitos começaram a tomar seus barcos e ir para as ilhas. Em canoas, pequenas velas e outras embarcações, as hordas chegariam. Nas marinas, os poucos ricos que conseguiram chegar antes de terem seus barcos assaltados, fugiram em seus barcos para as ilhas, mas os famintos subiam nos barcos ancorados e iam atrás deles e se travavam pequenas batalhas no mar.
            E milhares de helicópteros sobrevoavam a enorme cidade, procurando um local seguro para pouso, mas não havia, todos, então, apenas observavam a movimentação das hordas, que, como gafanhotos, continuavam destruindo tudo o que encontravam.
            Aos poucos, a gasolina dos helicópteros ia acabando e, não tendo como reabastecer, muitos tentavam fugir da cidade, aqueles que não tinha combustível suficiente desciam no alto dos prédios que ainda não tivessem sido tomados. Os que pousavam na rua, imediatamente, eram atacados pelos famintos e devorados vivos. Outros, vendo que a morte seria inevitável, preferiam que o helicóptero caísse e explodisse no chão. No meio da multidão faminta, tentando, com isso, matar alguns deles.
             A aeronáutica organizou seus aviões para atacaraquela enorme quantidade de gente que avançava com todos os tipos de bombas e munição, o problema era o reabastecimento dos aviões pois as hordas avançavam pelos aeroportos e invadia as bases aéreas, nos casos mais graves, muitos pilotos, ao ficar sem combustível, preferiam arremessar seus jatos em cima daquela massa humana à maneira dos kamikases na segunda guerra mundial.
            Decidi sumir dali. Percebi imediatamente que não haveria lugar seguro. Precisava apenas parar para reabastecer meu helicóptero. Voei para o mais longe que pude e encontrei um lugar no alto da serra da Cantareira. Eu deveria ser muito rápido e encher apenas com alguns galões de combustível. Eu sabia que o barulho do helicóptero chamaria a atenção. Dito e feito, enquanto eu terminava de colocar um galão de combustível, tendo a precaução de não desligar o helicóptero, um homem surgiu do meio do mato atirando. As balas não me atingiram mas perfuraram uma parte da fuselagem do meu veículo, subi rapidamente e alcei vôo. Eu estava desarmado e não podia reagir.
            Enquanto voava, liguei o rádio do helicóptero e tentei descobrir algum lugar para onde pudesse fugir e ouvi pessoas dizendo que se organizava uma resistência no alto das montanhas de Campos do Jordão. Voei para lá pensando somente em sobreviver.
            Segui voando por cima da Via Dutra e o congestionamento ia até onde não mais se avistava a estrada, todo o trajeto de São Paulo ao Rio estava congestionado. Milhões de automóveis e caminhões parados, não havia motoristas nos veículos. Vi muitos caminhões que tentaram sair da estrada e seguir pelos campos e banhados valeparaibanos, muitos atolados, muitos largados, o caos era total, o medo das hordas transformava todos em animais. Famílias tentavam refugiar-se nas florestas da Serra do Mar ou da Serra da Mantiqueira. Vi muita gente caminhando sem rumo, com medo de qualquer pessoa que chegasse perto.
            Em Taubaté, segui a Rodovia Floriano Pinheiro voando em direção a Campos do Jordão, mais adiante, no pé da serra da Mantiqueira, pude ver as hordas famintas que jogavam pedras e paus no meu helicóptero. Percebi que alguns atiravam e temi ser atingido e cair.
            Mais ao alto, alguns quilômetros antes da entrada da cidade, vi muitos automóveis atravessados na estrada formando uma espécie de barricada, e, a cada quilômetro, uma nova barricada de automóveis, voei para dentro da cidade procurando um local onde pudesse aterrissar, eu precisava reabastecer o meu helicóptero. Consegui descer um pouco mais afastado do centro da cidade, no heliporto de um hotel de luxo o nde, aparentemente, as hordas ainda não haviam passado.
            Mal eu desci e um homem veio recepcionar-me identificando como o gerente do hotel. Disse-me que a resistência estava armada por toda a cidade e que eles organizavam a resistência mais forte em cima da Pedra do Baú, pois ela era praticamente impossível de ser escalada pelas hordas. Estavam pedindo que todos que pudessem levassem as pessoas lá para cima com o máximo de mantimentos, água, gás, roupas, barracas, combustível e armamentos para resistir, somente os que tivessem algo para levar poderiam ficar por lá.
            A sensação era de que as hordas não agüentariam o frio do inverno e os ricos poderiam viver um bom tempo por lá até que as coisas se acalmassem ou até que encontrassem um novo local para onde fugir.
            Consegui abastecer o meu helicóptero e tinha combustível para muitas horas de vôo ainda. No entanto, tive de levantar vôo imediatamente ao ouvir o ruído insuportável das hordas famintas chegando. Mal consegui escapar, precisei chutar e pisar nas mãos de uma mulher que se agarrou nos estribos do aparelho. Escapei ileso, apesar das pedras e dos paus que quase atingiram o helicóptero, pude ver o pobre gerente sendo atacado, em pouco tempo ele seria transformado no próximo banquete antropofágico nacional.
            Então, do alto, eu percebi que as famílias, ao fugir das hordas, rapidamente, transformavam-se em integrantes destas mesmas hordas, transformavam-se em selvagens que começavam também a atacar os milionários, os políticos, os abastados que haviam se escondido nas montanhas mais altas, era a certeza de que o ódio acumulado contra os espoliadores não poderia mais ser contido. A única maneira era fugir dali para a pedra do Baú. Voei até lá e vi que a resistência estava organizada lá em cima mas me fizeram sinal para não descer porque não havia onde pousar, dezenas de helicópteros já estavam pousados, os que lá ficaram montavam guarda pelas passagens que poderiam levar ao alto e, à medida que alguém das hordas tentava subir, era alvejado e caía lá embaixo. Ali era o lugar mais seguro que eu vira até então, mas, mesmo sendo seguro, eu não poderia ficar porque não havia como pousar. Eu não poderia voltar à cidade porque a luta pela sobrevivência era extremamente sanguinária e eu não possuía qualquer arma para me defender.
            Compreendi, enfim que se acabara o país, a civilização brasileira encontrara o seu destino. Depois de quinhentos anos de exploração, de saques, de humilhação aos pobres e humildes, acontecera a grande revolução. As hordas resolveram se vingar de todos os Gérsons, de todos os Beneditos, de toda a classe alta, de todos aqueles que tivessem aviltado nos mercados financeiros, de todos os que ostentavam a riqueza e os humilhavam. As massas falidas decidiram destruir os jogadores de futebol que ganhavam milhões às custas delas e não lhes traziam mais alegrias, decidiram trucidar os cantores horríveis que faziam músicas bestializantes, decidiram colocar abaixo todos os prédios das grandes emissoras de televisão, incendiar as empresas multimilionárias, nacionais ou multinacionais, tudo precisava ser queimado e destruído. E os donos de todo o capital deveriam ser devorados para que não deixassem descendentes e matassem, enfim, a fome da turba. Os dez por cento mais ricos estava sendo devorados pelos famintos do país, os que tinham fome de tudo, de comida, de bebida, de diversão e de arte, de luxo, de lixo, de roupas caras, de viagens. Se nada tinham, nada ninguém teria. Não sobraria ninguém, não sobraria cachorro, gato, cavalo, gado, passarinho ou peixinho de aquário. Pelas cidades, via-se apenas os restos humanos que ainda eram devorados pelos ratos, das florestas próximas que ainda restavam, os animais saíam para devorar o que sobrava, via-se onças, lobos e outros carnívoros andando pelas ruas.
Não havia mais lugar seguro, lembrei-me de todos os meus roubos e sacanagens, de todos os desvios de dinheiro público, de todas as negociatas em que eu e os amigos do governo ganhamos milhões, de nada mais elas adiantariam pois não havia como negociar com as hordas, que tomaram o país. Rumei de helicóptero para a Argentina, pensei em me reabastecer de gasolina e voar para o Caribe, onde eu havia mantido minhas contas secretas recheadas de milhões de dólares nos paraísos fiscais.
            No vôo para a Argentina, eu via muitos helicópteros pousados no chão, seus donos pediam socorro aos outros que passavam e ninguém os auxiliava. Também havia outros caídos, ou abatidos pelas massas ou sem gasolina. Todos fugiam desesperados para algum lugar mesmo sabendo que não havia mais para onde fugir.
            Os automóveis de luxo corriam pelas auto estradas, muitos eram parados em toscas barreiras, os motoristas saíam atirando para todos os lados mas as hordas famintas eram infinitas, ainda que alguns morressem, milhares surgiam do nada e logo os pegavam, saqueavam, roubavam e se banqueteavam com os grandes corpos recheados de gorduras, açúcares e álcool em comemorações antropofágicas. Por toda a parte viam-se os churrascos de gente e a festa dos famintos. E quando, de dentro de um dos carros de luxo ou de dentro de um dos helicópteros saía uma bela acompanhante de um dos figurões, ela era devidamente despida, abusada, estuprada pelos homens das hordas e, finalmente comidas, apesar de não serem apetitosas porque dispunham de poucas carnes macias.
            Havia um grande congestionamento de helicópteros na fronteira com a Argentina. A aviação platina impedia o avanço dos milhares de helicópteros brasileiros, alguns tentavam contornar a Argentina e ir para o Paraguai, somente os que tinham bastante gasolina conseguiam chegar nas fronteiras, consegui comunicar-me com o Coronel Gérson que, naquele momento, tentava voar para a Bolívia.
            Os que tentavam furar o bloqueio da aviação platina eram abatidos, os que paravam no chão a alguns metros da fronteira e tentavam atravessar a pé, eram alvo do exército argentino ou paraguaio, que montaram barreiras.  Pouquíssimos conseguiam o intento e, mesmo assim, pelo que soube, eram presos ou mandados de volta, se ofereciam dólares para fugir, os homens da Argentina extorquiam-lhes tudo o que fosse possível e quase nada sobrava.
            Não havia mais saída, agora, apesar de toda a riqueza que eu acumulara, ninguém mais poderia ajudar-me. Percebi que o meu destino era transformar-me em churrasco na antropofagia nacional instituída. Todo o meu dinheiro não compraria minha vida, todos os meus bens não me protegeriam, não conseguia mais imaginar um futuro mas um fio de esperança ainda corria pela mente. Mudei meu rumo e fui para o norte, tentaria a Amazônia, mas meu combustível estava no fim.


FIM